Fantasmas no planeta Soderbergh

Há umas curvas interessantes na carreira de Steven Soderbergh, obviamente reflectidas nos termos da sua aceitação e recepção quer pelo público quer pela crítica, para o dizer de maneira tão genérica quanto possível. Já esteve na mó de cima, já esteve na mó de baixo, voltou a estar na mó de cima, e provavelmente o ciclo repetir-se-á. Aliás, entrou no cinema logo pela mó de cima: 1989 e o Festival de Cannes rendido a "Sexo, Mentiras e Vídeo", a mais auspiciosa estreia com que um realizador (Soderbergh, então com 26 ou 27 anos) poderia alguma vez ter sonhado.

Não é, convenhamos, a consagração convencional para os "wonderkids" do cinema americano - que normalmente são comemorados em sede própria, isto é, em Hollywood e nos Óscares: veja-se o caso recente de Sam Mendes (que é inglês, bem sabemos, mas o filme não) e da sua "Beleza Americana". É lícito pensar, tendo em conta uma observação geral do que tem sido a carreira de Soderbergh, que o facto de ele ter vivido esse primeiro grande momento em Cannes - no reduto nuclear, em termos de mercado, de uma ideia de "cinema de autor", por comercial ou publicitária que seja - foi algo que deixou consequências. Terá, entre outras coisas, oferecido a Soderbergh uma ideia de "público", uma ideia do que seria o seu público, e por extensão, uma ideia do que seria o seu cinema.

Talvez isso explique um pouco por que razão a seguir a "Sexo, Mentiras e Vídeo" veio "Kafka". Se o primeiro era, acima de tudo, um filme pessoal, o segundo era sobretudo um "filme de autor", um filme que procurava uma ideia do que é um "filme de autor" ou um "filme artístico" de acordo com um prisma relativamente comum em alguns meios do cinema americano - "Kafka" não era um filme muito diferente daquilo que são, por exemplos, os filmes de Woody Allen quando decide filmar "à europeia".

Filme falhadíssimo (embora, como sempre, haja opiniões para tudo), "Kafka" lançou Soderbergh numa espécie de ocaso, remetendo-o (de moto próprio ou por força das circunstâncias) para uma condição discretamente "artesanal", em todo o caso bastante diversa dos moldes em que se revestiram os seus inícios. Nada disto significa que tenha deixado de fazer filmes "pessoais", e ainda menos que tenha deixado de fazer bons filmes - pelo contrário, de "King of the Hill" a "Erin Brockovich", somos daqueles que acham que o melhor Soderbergh se revelou nesse período de discrição.

O que é interessante notar é que esse período culminou em nova consagração pública e crítica de Soderbergh, quando "Erin Brockovich" e "Traffic" conquistaram a Academia, como se esta, dez anos depois, finalmente o aceitasse (mas deixemos de lado teorias psicanalíticas). "Erin Brockovich", em particular, tinha características passíveis de o transformar simultaneamente em emblema e em apogeu do Soderbergh discreto e artesanal. Era um filme quase anódino, quase corriqueiro, quase indiferenciável de dezenas de outros, mas que no entanto se escapava dessa massa por razões de natureza e sensibilidade estritamente formais (tempos, planos, pormenores de "mise-en-scène" e de montagem), acabando por constituir-se em espécime de algo em vias de distinção: uma segunda linha americana menor mas sólida, discreta mas vistosa, pragmática mas com margem suficiente para ocupar as entrelinhas.

atmosfera. Ora ainda mais curioso é notar que, por diferentes que sejam estes dois momentos (e os filmes que directamente lhes deram origem) de consagração de Soderbergh, há qualquer coisa de repetido no que vem a seguir. É um pouco como se Soderbergh voltasse a estar à vontade - dir-se-ia em bom português "a sentir as costas quentes" - para apostar outra vez em filmes que deixem bem explícito o investimento "autorístico" e "artístico" que lhes está subjacente - e o Soderbergh artesão apaga-se para que se ilumine o Soderbergh autor. "Full Frontal" foi um indício, parcialmente resgatado pela gritante auto-ironia, para não dizer mesmo auto-caricatura, subjacente a todo o filme. Mas este "Solaris" - encontro de Soderbergh com um nome que para toda uma geração de espectadores de cinema personifica a máxima expressão do "autor": Andrei Tarkovski - arrisca-se a ser um novo "Kafka" na carreira do seu realizador (até se repete a raiz europeia do projecto!).

"Solaris", "remake" do filme de Tarkovski, é uma nova adaptação do romance homónimo de Stanislaw Lem, que descreve um planeta, Solaris, que reenvia aos que entram na sua órbita imagens dos entes queridos desaparecidos. É a Solaris que se dirige o astronauta (interpretado por George Clooney) que vai ser assombrado pelo fantasma da mulher morta.

Diga-se de passagem, para evitar equívocos comuns, que nada nos move contra a ideia, nem levantamos questões de "legitimidade" (por que raio não poderia Soderbergh refazer "Solaris", fosse a partir do filme ou do romance de Lem?), nem brandimos o fantasma ofendido (?) de Tarkovski (e nem sequer achamos que o "Solaris" original seja propriamente obra-prima intocável, acrescentamos timidamente). O problema é que o "Solaris" de Soderbergh é um grande vazio preenchido com pose e muita "atmosfera", incapaz de resolver uma série de conflitos que acabam por desembocar num compromisso indistinto que não é carne nem é peixe, envolto numa solenidade fastidiosa e até irritante.

Dá impressão que Soderbergh tinha uma ideia - refazer "Solaris" - mas depois não tinha mais, o que é um problema porque o gesto não é tudo. E, o que é pior, desapareceu toda aquela subtileza feita de pequenas coisas discretas que no fundo é o que mais gostamos em Soderbergh (onde está, por exemplo, a ironia, ou o gozo de juntar dois planos?). Se este filme confirma que há dois Soderberghs, pois então gostamos mais do outro - o de "O Falcão Inglês" ou de "Erin Brockovich". O de "Solaris" é um impostor a aproveitar-se do nome do outro.

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