De novo, a mentira da negação do Holocausto...

No final do século XX, houve em Portugal alguns episódios pontuais de manifestações anti-semitas, em que foi feito recurso à negação do Holocausto. Em 1996, Artur Nunes da Silva negou o que chamou "mito do Holocausto" (JN,2/8) e Silva Resende, director de O Dia (10/9), desculpabilizou os crimes nazis, e, no ano seguinte, um candidato à presidência da Câmara Municipal do Porto, general Carlos Azeredo, colocou aspas ao referir-se ao Holocausto (Público, 1/8). Recebeu aliás o apoio de Alberto João Jardim, que afirmou saber «o que é a organização do movimento judeu internacional» e considerou «uma hipocrisia apenas se falar nos crimes do nacional-socialismo» (Público, 16/8 e 20/8/97).Eis que surge agora no Público de 24/3/2003, um texto de Pedro Miguel Melo de Almeida, onde são, de novo, colocadas aspas na palavra Holocausto e onde se põe em causa a cifra de seis milhões de judeus mortos. Claro que não vou entrar no jogo obsceno de reduzir pessoas mortas a números, discutindo cifras, até porque muitos historiadores, baseados em factos, já as provaram . Não deixo, porém, de registar o facto de, ainda hoje, os nazis, que tudo fizeram para ocultar o extermínio em massa de judeus, encontrarem advogados de defesa que desculpabilizam - ou antes, justificam - os massacres. Depois, de forma desonesta, o leitor mistura revisionistas e negacionistas, como Robert Faurisson ou Roger Garaudy, com historiadores, que, segundo ele, «são revisionistas e lutam contra ao sionismo» - Zev Sternhell e Yehuda Bauer, entre outros. É claro que estes são convocados, não por serem historiadores, mas por serem «judeus», e se omite que nenhum deles é revisionista nem nega o Holocausto. Finalmente, o leitor apela «ao livre exame e ao livre debate», como se verdade e mentira em História se equivalessem e esta se confundisse com opiniões políticas e ideológicas. Deliberada e já velha é também a forma como, por trás de uma pretensa posição anti-«sionista» - politicamente correcta -, se revela uma atitude claramente anti-«semita». «Chassez le naturel! Il revient au galop».Não vou entrar em diálogo com o leitor, não porque seja contra o pluralismo de opiniões, mas porque um diálogo supõe um terreno comum e um comum respeito - na ocorrência - pela verdade. Tal como escreveu o historiador Pierre Vidal-Nacquet, há vinte anos, se é verdade que se pode e deve discutir sobre os "revisionistas", analisando os seus textos da mesma forma como se faz a anatomia da mentira e caracterizando os seus fundamentos ideológicos e anti-semitas, «não se discute com os "revisionistas"». A negação do Holocausto, muitas vezes travestida de «revisionismo», já foi suficientemente desmascarada para ser sujeita a debate. Inclino-me, porém, contra certas opiniões, para achar que os negacionistas têm direito à liberdade de expressão, até porque o a negação do Holocausto e das câmaras de gás teve o efeito beneficamente perverso de obrigar os historiadores a melhor aclarar os factos e a investigar, de forma redobrada, o terrível genocídio cometido pelo regime nazi. Obrigou-os também a uma reflexão sobre o estatuto do «facto» no discurso histórico, sem o mitificar mas também sem o evacuar, em proveito unicamente do discurso, como o fez certo pós-modernismo e «criticismo». Este último não é, porém, a mesma coisa que o «hipercriticismo», de que se reclamam os revisionistas, e que deve ser desmistificado, dado que a diferença entre a verdade e a mentira não é uma questão quantitativa mas qualitativa.É verdade que a linguagem utilizada pelos nazis para falar da «solução final» era codificada e, por isso, o historiador tem de descodificá-la. O facto de não ter sido descoberto ou não existir nenhum documento onde Hitler ordene explicitamente o extermínio, não invalida o facto que ele tenha existido. Significa só que essa realidade deve ser procurada noutros indícios, que os há e muitos, desde os fornecidos pelos testemunhos das vítimas como pelos dos carrascos. Os historiadores sabem que a verdade é fugidia e passível de ser revista e que há uma grande dose de subjectividade na escolha das fontes utilizadas. Mas, isso não significa que sejam considerados legítimos e equivalente todos os pontos de vistas e perspectivas, ou que se denegue toda a existência possível da «realidade». O relativismo, de que se alimentam os que negam o Holocausto, acaba por postular que não é possível uma história comum, mas só representações antagónicas e diferenciadas, bem como por instilar a dúvida quanto à possibilidade de escrever uma história que se reclame de uma parte mínima, compreensível, de verdade. Se toda a história é narração, dado que explicar é contar, a narração histórica subordina-se a critérios de verdade e baseia-se em provas e argumentos.Os factos do Holocausto estão devidamente comprovados em documentação e indícios orais e escritos. É a partir deles, da existência real dos campos de extermínio, das câmaras de gás, de milhões de vítimas, que surgem diversas interpretações historiográficas sobre o Holocausto (sem aspas). Alguns historiadores consideram o extermínio um objectivo claramente definido à partida por Hitler, enquanto outros acentuam os meandros do caminho percorrido até ao Holocausto e a responsabilidade de uma cadeia interminável de outros responsáveis. É hoje maioritariamente partilhada a ideia de que a destruição dos judeus e outras categorias consideradas inferiores (ciganos, polacos, russos, associais, homossexuais) teve um carácter cumulativo, procedendo por graus: a definição dos judeus, depois, a proibição de certas actividades e profissões, a expropriação, a concentração em guetos, a deportação e, finalmente, o assassinato em massa.Quando foi decidido o ataque à URSS, iniciado em Junho de 1941 e descrito por Hitler como uma «guerra de aniquilação total», o comando da Wehrmacht emitiu a Komissarbefehl (ordem dos comissários), que ordenava a liquidação de todos os comissários soviéticos, incluindo nessa categoria os comunistas e judeus. Em Outubro, iniciou-se a deportação dos judeus do território do Reich para os guetos e começaram os massacres de judeus, em Riga e Chelmno. A máquina da aniquilação tinha sido posta em movimento. Só faltava planear e a «solução final», que ficou entregue à chefia das SS, na conferência de Wannsee (Berlim), de Janeiro de 1942. Os motores diesel utilizados para matar em Chelmno e Maidanek foram substituídos pelo gás Zyklon B. O primeiro massacre dos judeus dos guetos da Polónia - a chamada Aktion Reinhard - ocorreu no campo de Belzec, transformado em campo de extermínio, ao qual se juntaram os campos de Sobibor, Treblinka e Auschwitz/Birkenau, onde as câmaras de gás começaram a funcionar em Junho de 1942.historiadora

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