A influência da angústia

1. Possivelmente, alguns leitores reconhecerão no título desta crónica uma variação do título da tradução portuguesa (trad. Miguel Tamen, Ed. Cotovia, Lisboa, 1991) de um livro de Harold Bloom. Embora tradições familiares (digamos) mo autorizem, eu tenho alguma angústia ao traduzir por esse termo o termo inglês "anxiety" ("The Anxiety of Influence" é o título do livro de Bloom publicado há vinte anos). Porque angústia é um estado de exagerada ansiedade e Bloom não é muito de exageros, nem de pôr socalcos debaixo de palavras dessas. Ansiedade também nunca seria correcto, pois o termo tem qualquer coisa de frenético, ou pelo menos de veemente, na sua invocação ou desejo. E não é de desejos de influência que Bloom fala (e daí...) mas da aflição que esta provoca. Tribulação não é bonito (lembra tripulação) mas, entre tantas hipóteses, talvez fosse a que eu escolhesse. As almas religiosas costumam (ou costumavam) estar tribuladas ou atribuladas e os poetas, mesmo os mais agnósticos, são almas religiosas. Até agora, tinha-me esquecido de explicar que o livro de Bloom é, ou pretende ser, uma teoria da poesia "através de uma descrição da influência poética". Até agora, tinha-me esquecido de explicar que este primeiro parágrafo é um "encobrimento poético", aquilo a que Bloom, retomando um termo de Lucrécio, chamou clinamen, um desvio ou uma queda. Uma má leitura, em suma.2. Mas esta crónica não é, nem pretende ser, uma contribuição para a teoria da poesia, nem a minha presente tribulação ou atribulação provêm da leitura de Bloom. Aliás, o próprio Bloom, que me foi suscitado mais por algumas tribulações sobre a influência do que por tribulações sobre a tribulação, diz que, no sentido da influência poética ou artística, o uso da palavra é muito tardio, não anterior ao proto-romantismo e aos anos finais do século XVIII ou iniciais do século XIX. Rimas de antigos marinheiros. Para não me desviar mais - já ia em jornada para cálidos céus de cobre - agarro-me pela última vez a Bloom e cito-o, segundo a tradição: "A palavra 'influência' recebeu o seu significado de 'ter um poder sobre outra pessoa' logo no latim escolástico de São Tomás, mas durante séculos não perdeu o seu sentido etimológico de 'influxo', e o seu sentido primordial de uma emanação ou força sobre a humanidade proveniente dos astros. No seu primeiro uso, ser influenciado queria dizer receber um fluido etéreo proveniente dos astros, um fluido que afectava o carácter e o destino de uma pessoa e que alterava todas as coisas sublunares. Um poder divino e moral - mais tarde apenas um poder secreto - exercia-se a si próprio, desafiando tudo o que nos parecia voluntário."Muito para além da influência literária ou artística, eu, que tanto gosto de citar o Lichtenberg dos macacos e dos espelhos, quando ele disse: "Também eu gosto de admirar os grandes homens, mas só aqueles cujas obras não entendo" (o que é o máximo da pacificação poética), eu soube bem, desde muito novo, o que era receber o meu poder do poder de outra pessoa. Sabendo receber dela, ou através dela, o "influxo" astral, influxo divino ou influxo moral.Abandonei-me a esses vários pais ou a essas várias mães, poucas vezes de uma geração acima da minha, e deixei que me influenciassem, ou melhor, pedi-lhes caladamente que me influenciassem.Seria impudico, neste género de texto, vir falar de coisas divinas. Mas, entre as coisas morais, sei perfeitamente quem alterou esta coisa sublunar que sou, como sei quem me passou o fluxo de Mozart ou o fluxo de Musil, o de Mizoguchi ou o de Nicholas Ray, o de Agustina ou o de Sophia, o de Kierkegaard ou o de Fichte, o de Jaurés ou o de Mounier. Sorvendo esses fluidos, deles e dos seus transmissores, olhos fitos nos quais até contava... Tantas, tantas coisas que contava.3. Deixei-me guiar e nunca serei eu a chamar lúgubre à jornada em que esses me guiaram. E, como os guias ou mestres que escolhi e me escolheram eram contraditórios, nas artes e nos ofícios, com essas contradições vivi, na imagem em que me reflecti e me projectei. Já o disse atrás; a influência (essas influências) eram a principal fonte da minha pacificação (se é que jamais me pacifiquei) e da transmissão que, através de mim, se processava dos fluidos de que fora receptor.Mas um dia, sem sobreaviso, chega-se à metade da nossa vida. Ensinaram-nos que é quando aparece Virgílio, mas Virgílio é demasiado distante para ser o guia que outrem foi. Na metade da nossa vida o que aparece ou acontece é o vazio deixado pelo desaparecimento desse outrem, por muito plural que o pronome indefinido haja sido ou possa ser. É quando, espantados com tão inesperada fragilidade, nos perguntamos como servimos senhores que afinal podiam morrer. E, pouco a pouco, ou muito a muito, com aquela velocidade que o tempo adquire depois da tal metade, descobrimo-nos nautas sobreviventes, longe da costa, e unicamente dependentes do nosso esforço para lá chegar. Quando boiamos, para descansar, os astros no céu são idênticos ao que sempre foram e idêntico é o fluxo deles. Mas já ninguém, com a nossa forma, nos serve de viático entre eles e nós. Começa então a atribulação da influência ou, para me deixar de rodeios, a angústia da influência. Que finalmente consiste, nesta outra dimensão, na descoberta de que a angústia provém não da influência, mas da ausência dela. Só aquele que renunciou à influência sabe o que é a angústia. "Farewell happy fields." Mesmo que eu seja o mesmo? Mesmo que eu seja o mesmo.4. Generalizei, o que não é muito conveniente em textos tão subjectivos.Voltando a ela (subjectividade), digo-vos que tenho atravessado estes tempos de matar com alguma da angústia que caracterizei.Novo, muito novo, defini a minha família. Desviei-me às vezes - desvios de esquerda mais profundos e mais cismáticos do que desvios de direita, assinalando nos anos 60 ou 70 a crista da rebentação. Mas nunca estive tão longe que não fizesse parte, mesmo como heterodoxo, mesmo olhado de soslaio, de uma equipa e de timoneiros. Se acontecia mais desorientação, recorria aos mestres e na tensão do Édipo de Bacon, revisitando o de Ingres (que "por acaso" ficou nestas páginas como ilustração, quando já andava à volta com estas esfinges), ouvia o que os oráculos tinham para me predizer. Depois, julgava-me a salvo na acalmia estática transfigurando a ética.Até que um dia estava na Arrábida. O telefone tocou e a Mónica disse qualquer coisa que estava a passar na televisão. Tempo de almoço, luz de muito sol. Acenderam a televisão. A primeira das "Twin Towers". Quando cheguei à praia, já a segunda fora decepada. Falava-se do Pentágono, do Capitólio, da Casa Branca. E a outra Mónica (primeira pessoa a quem ouvi essa frase) disse que mais nada seria igual ao que dantes fora.Para mim, nos domínios da angústia carente de influência, nunca mais foi. A tal família, há tantos anos definida, começou primeiro a indefinir-se e depois a soçobrar. Como naqueles filmes de ficção científica, em que até os próximos são "poltergeists", quem eu esperava que estivesse ao meu lado não o estava e quem eu esperava que não estivesse ao meu lado, estava-o. E eu não os podia acusar de incoerência ou de inconstância. O incoerente era eu ou tinha-me tornado eu.Era só um doce princípio. À medida que esta danosa guerra, que esta danada guerra, que esta inevitável guerra, se preparou e não se declarou, tudo se tornou muito pior. Confesso que me precipito diariamente para ler os mestres - nacionais ou estrangeiros - à espera de ver justificado o partido que tomaram. Não consigo. Mas alguns artigos do lado contrário - como um que li no jornal espanhol "ABC" a 25 de Fevereiro -, podia assiná-los sem hesitação.Discretamente, procuro a companhia dos falcões silenciosos. Emudeço mais quando as pombas arrulhantes me dizem que deixaram de ter poder sobre mim ou que eu deixei de ter poder sobre elas e as crias delas. Mas, enquanto me lembrar daquele dia da Arrábida, desse 11 de Setembro, que essas mesmas pombas varreram da memória ou da razão, julgo que sou fiel aos fluxos que outrora recebi e transmiti, ao recusar-me qualquer pensamento, palavra ou obra que me aparte das vítimas desse inominável horror ou que me aproxime dos bárbaros que o cometeram, o pagaram, o apoiaram ou o compreenderam. Mesmo que o preço a pagar seja o da influência da angústia, ainda mais do que o da angústia da influência.

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