Good f(av)ellas

Grande sucesso internacional, desde "Central do Brasil" que não se falava tanto de um filme brasileiro como agora com "Cidade de Deus". Normalmente estas coisas têm tendência para dar para o torto - a expectativa cresce, e depois vai-se ver o filme e apanha-se uma desilusão. "Era só isto?", foi o que muita gente perguntou quando finalmente pôde ver o multi-propagandeado filme de Walter Salles, "Central do Brasil".

Confessamos que estávamos um pouco receosos que se verificasse um fenómeno semelhante com "Cidade de Deus", e que o filme se limitasse a ser uma curiosidade étnico-sociológica (a "vida nas favelas") desmesuradamente ampliada por um hipotético "lobby da lusofonia" com ramificações internacionais (os tempos são de paranóia colectiva, de qualquer maneira), como forma de apoio a uma cinematografia brasileira que, sendo uma das mais activas entre as chamadas cinematografias "periféricas", anda a precisar de um grande filme como de pão para a boca.

Felizmente, os temores não se confirmam, e "Cidade de Deus" é mesmo um bom filme. Que não se decide, obviamente, por mostrar como é (ou era, nos anos 60 e 70) a vida nas favelas, mas pelo tipo de olhar que sobre ela deita, e pela perspectiva que constrói. Não é, claro, um documentário, nem parte de qualquer pressuposto documental; mas aposta num registo de verismo (mais do que de "realismo") que, no seu melhor, dilui as tradicionais fronteiras entre documento e reconstituição (forçosamente ficcionada).

Há, sobretudo, uma notável capacidade de permeabilidade aos lugares, assim como se o filme se deixasse "encharcar" pelo tempo, pelo espaço e pelo espírito da favela, e tudo nascesse da energia assim gerada. Mesmo em termos narrativos, e mesmo no que toca à reconstituição (o argumento baseia-se em episódios e personagens que existiram de facto), "Cidade de Deus" parte realmente daí - e durante o genérico final temos direito a imagens de arquivo onde podemos reconhecer esses mesmos episódios e personagens que o filme foca.

Mas, insistimos, o que decide o filme não é essa caução de verdade exterior, mas a forma como constrói uma verdade interior que desvaloriza a necessidade da caução: é, de algum modo, a superação da reconstituição histórica por uma invenção mitológica, ao mesmo tempo aquilo que esperamos e aquilo que não esperamos encontrar num filme sobre a "vida nas favelas". Que é capaz de conservar um permanente estado de ebulição, uma energia em contínua circulação, que mostra a favela como um espaço regido por uma espécie de equilíbrio selvagem. Daí que, quando dizemos que se trata de um filme sobre a "vida nas favelas", queiramos dizê-lo num sentido próximo ao daqueles filmes sobre a "vida na selva": é a mesma lógica, mais do que a mesma metáfora.

Reconheçamos que apesar de tudo, nem começa da melhor maneira. Os primeiros momentos - introdução das personagens, apresentação do espaço e do contexto - têm um registo demasiado evocativo, envolto numa fotografia estetizante e num dispositivo maneirista (os paralíticos para apresentar as personagens, por exemplo), que parecem anunciar um filme algo formatado, para mais embrulhado no registo semi-cândido das narrativas sobre o "jovem-puro-cuja-ambição-é-fugir-do-sítio-corrupto-onde-nasceu-e-vive". Felizmente o filme não confirma essa ameaça, quer porque o "jovem puro" se revela uma personagem mais complexa (alguém que aprende a viver dentro dum sistema para melhor conseguir sair dele) quer porque, ao fim e ao cabo, o seu papel é sobretudo de narrador, condutor do olhar do filme sobre outras coisas e outras personagens.Ao mesmo tempo, há um ponto de vista saudável sobre tudo isto. Nenhum lamento moralista perante a "degradação humana". "Cidade de Deus" tenta suspender a necessidade de um julgamento daquilo que mostra: é um filme que, partindo inapelavelmente de dentro (de dentro da favela), sabe acima de tudo respeitar a integridade daquele espaço e daquelas personagens.

É um pouco como naqueles filmes de "gangsters" (em mais do que uma ocasião faz lembrar o "Goodfellas" de Scorsese ou os "Padrinhos" de Coppola), onde a evidência da marginalidade, sendo uma evidência, não precisa de qualquer insistência, podendo, por isso, dar lugar à criação de um esquema de valores próprio, possuidor dos seus códigos de conduta, dos seus sentidos de honra e desonra - e isso, o desenho entre o épico e o heróico "bigger than life" das personagens (mesmo das socialmente mais desprezíveis), o filme faz muito bem.

E, depois, consequência ainda dessa fortíssima interioridade em que o filme se consegue colocar, "Cidade de Deus" acaba por ser, acima de tudo, um retrato de grupo com lugar ao fundo, numa constante interacção que é o seu principal carburante. Nessa perspectiva, não andamos longe daqueles "frescos" urbanos - muito quentes, tensos e violentos - como os que há nalguns "filmes de bairro" de Spike Lee, como "Do the Right Thing" ou "Summer of Sam". Descrição de um lugar tomado como um organismo vivo, cheio de sangue a percorrer-lhe os meandros. Não é muito fácil fazê-lo com esta consistência e esta neutralidade, o que é uma boa medida do sucesso do filme de Fernando Meirelles.

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