Duas gerações de videoarte em Portugal: João Onofre e Julião Sarmento

%João Pinharanda

Julião Sarmento é pioneiro na utilização do vídeo nos anos 70 e a ele tem frequentemente regressado, desde os anos 90; João Onofre é um dos mais destacados autores desta mesma década. Por mero acaso de programação coincidem no tempo alguns vídeos de João Onofre (1976) apresentados no Museu do Chiado e uma única peça vídeo de Julião Sarmento (1949) mostrada na galeria Cristina Guerra. O que justifica a sua reunião neste texto é mais do que essa coincidência de datas e técnicas. E como a biografia importa podemos desde já dizer que, não apenas eles se interessam sinceramente pela arte um do outro como a formação de ambos se fez, na Escola de Belas-Artes de Lisboa, dentro do tradicional campo disciplinar da pintura. De Onofre, porém, apenas se conhece vídeos. E, antes da recente retrospectiva (no mesmo Museu onde Onofre agora expõe), Julião era mais reconhecido como pintor (assim se consolidou no panorama internacional dos anos 80) do que como autor de vídeos. Nos seus mais antigos trabalhos (finais dos anos 90), Onofre, seguindo um modo geracional, trabalhou preferencialmente fragmentos de filmes (de Antonioni, Fassbinder, Kubrick) numa lógica de citação e acentuação de sentidos que o corte, repetição e montagem em "loop" de pequenas cenas lhe garantiam. Depois, enveredou pela encenação e registo vídeo de "performances" muito simples das quais sempre se ausentou enquanto protagonista. Os actores escolhidos são pares (masc./fem.) que se confrontam (caminham interminavelmente um para o outro, caem um sobre o outro, etc.). É então que surge a definição dos seus parâmetros de enquadramento visual. Há uma câmara fixa e o nada que se passa (ou o tudo que se repete) está compreendido entre as quatro margens da tela (designação que serve à pintura e ao cinema). Por seu lado, as personagens são elementos que, não deixando de ser corpos significantes (em choque físico e sonoro, afrontados ou adossados), são também formas, capazes de se darem a ver como elementos de uma abstracção compositiva.Ao passar do par para a cena colectiva (de que se pode ver aqui: "Casting", 2000, "Instrumental Version", 2001, "Pas d'action", 2002) podemos falar da passagem para o palco. Temos a introdução do som musical (numa pesquisa que nos situa no centro da contemporaneidade pop) e temos a acção coreográfica (enunciando situações que se apresentam progressivamente mais clássicas: o "casting" fílmico, o coro em actuação, exercícios do corpo de "ballet"). Mas não deixando Onofre de usar os recursos técnicos anteriores, continuará a ser em termos de composição pictórica que é necessário pensar parte destes trabalhos. As numerosas figuras (oferecidas não apenas ao olhar-registo do artista como também ao nosso) funcionam como elementos isolados (sem narração possível) de um fresco ou tela. Ao protagonizarem uma acção mínima mas com príncipio e fim (estas peças não são em "loop"), com unidade de tempo e espaço (ao repetirem gestos e frases, trabalharem para um resultado comum ou ao manterem-se quase imóveis), estas peças obrigam-nos a um olhar contínuo; e, durante esse tempo, conduzem-nos a uma escolha de rostos/corpos que muito se pode assemelhar ao olhar/à atenção a que nos obriga a pintura (ou a fotografia). Ao passar, agora, para trabalhos filmados no seu próprio estúdio, embora mantenha as soluções técnicas referidas, Onofre complexifica as relações com a história da arte (quer pré-moderna quer de vanguarda). O que tinha sido citação fílmica passa a citação artística ("Belevie (levitation on studio") 2002 ou "Catriona Shaw sings Baldessari sings LeWitt re-edit Like a Virgin extended version", 2003). O(s) corpo(s) recupera(m) a sua vocação abstracta (não já como elemento plástico mas mantendo-se como elemento de linguagem discursiva, comentando questões contemporâneas (da correspondência das artes à ruptura das suas fronteiras, de Nauman a Baldessari e LeWitt, da "performance" ao conceptual) e não deixando de seduzir intensamente os sentidos do observador. Tudo então estaria bem ("Nothing will go wrong" é título de uma peça especial no conjunto exposto, porque tem um protagonista individual, mas que dá nome a toda a exposição). Porém, acontece, no centro deste percurso, uma irrupção do irracional: um abutre que, largado no estúdio, indefeso e ridicularizado no seu gigantismo, o vai destruindo sem nexo e sem possibilidade de escape ("Untitled (Vulture in the studio)", 2002).Nos vídeos iniciais de Julião Sarmento há um predomínio de referência ou matriz fotográfica, entendida como registo extensivo no tempo - do mesmo modo que as fiadas de fotos e/ou provas de contacto de outras peças se apresentam como registos extensivos no espaço. Assim, os planos fixos das peças dos anos 70 ("Pernas", 1975, "Sombras" e "Faces", 1976, etc.) não podem entender-se, de modo algum, como um "quase-cinema": registam em planos-sequências e de câmara fixa uma situação onde, também o(s) corpo(s) pouco se move(m) - tentando manter a imobilidade ou optando por uma mobilidade mínima ou repetitiva, não há, neles, narração nem propriamente acção. É evidente que esta opção não é documental: toda a possível objectividade é sabotada pelos temas, tempos e enquadramentos. Trata-se de registos de um protagonista individual ou de um par, com planos americanos (por vezes desviados do rosto para o sexo) ou grandes planos; e as obras funcionam dentro de si mesmas, como se se vissem a si mesmas. Esta solução compositiva e temática implica uma solução de observação individual (aquilo que repetidamente tem sido ligado, no autor, a um radicalizado discurso de voyeurismo). É também de uma atenção de tempo curto que falamos - quer dizer, de uma obra de identificação rápida e, por isso, imediatamente circular, que não conduz a um olhar erudito. Porém, em peças mais recentes, esta realidade - sem alterar o seus pressupostos de conteúdo - adquire muito maior sofisticação e complexidade de recursos e apresentação formal (a peça apresentada em Veneza, 2001, por exemplo). É isso que nos mostra também a sua obra mais recente ("Parasite", 2003, 13m55s). O movimento mecânico de "Sem título", 1999 (onde se via uma mulher descer interminavelmente uma calçada) concretiza-se em "Parasite" num verdadeiro, embora distorcido, memento de acção. Outra figura feminina entra no "atelier" do artista, despe-se, evolui sobre o fundo de uma parede, veste-se, sai de novo. Há um evidente trabalho visual que acentua o formalismo de execução do conjunto: para além da montagem cinematográfica e acelerações da imagem (nos movimentos dos sensuais movimentos dos pesados cabelos negros), todo o filme passa em sucessivos "rewinds". O espectador sente então uma permanente estranheza, concentra a sua atenção na descodificação das soluções técnicas e dos seus efeitos formais - para os quais o tipo de corpo da modelo escolhida não é fruto do acaso. A mímica dominante de um estafado "strip-tease" é, nos momentos finais, superada pela sugestão da citação histórica: num leque de opções que pode ir do neoclassicismo académico de Ingres ao "retour à l'ordre" do Matisse e Picasso do pós-guerra, lembramo-nos de um modelo procurando a pose certa para posar.

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