Era uma vez na américa

Em 1977, Martin Scorsese anunciou, nas páginas das revistas especializadas, que estava em vias de concretizar o seu projecto de adaptação de "Gangs of New York", livro de Herbert Asbury.

"Mas em 1980, o período em que os realizadores de cinema tinham imenso dinheiro para fazer filmes pessoais acabara", recordou Scorsese numa entrevista recente. Não é constatação "de passagem", é fulcral. Explica, por exemplo, por que é que "Gangs de Nova Iorque" aparece como objecto de outra era.

"Flashback": 1980 foi o ano de "As Portas do Céu", o épico de Michael Cimino, cujo "flop" comercial foi tão devastador que travou aquela que parecia ser a ascensão irresistível dos "movie brats" (Cimino, Spielberg, Coppola, Scorsese...) até ao trono da indústria. A partir dessa altura, "cinema de autor" feito com grandes orçamentos ficou a ser estigma de megalomania, as nuvens da suspeita cobriram os céus de Hollywood e começou a chover conservadorismo. Os menos dados ao "faro comercial", os mais imprevisíveis (os mais frágeis Coppola e Scorsese) sentiram os efeitos.

"Flash forward": mais de 20 anos depois, Scorsese concretiza "Gangs de Nova Iorque", a sua versão de um "era uma vez na América...". Mas hoje, o espaço de uma autoria a ocupar o centro (a utopia dos "movie brats" na década de 70) tem a chancela da Miramax, que tem sido porto de abrigo da independência, mas também tem feito da "diferença" um "produto cultural". Ou seja, os tempos são outros. As tão mediatizadas "lutas" entre o cineasta e o produtor, Harvey Weinstein, pela duração do filme - num cenário particular: a Cinecittà, onde Fellini, um dos cineastas amados pelo realizador de "Taxi Driver", rodou alguns dos seus filmes - e a tragédia do 11 de Setembro protelaram várias vezes a estreia do filme, e deram a ideia de que o destino preparava um "remake" de desastres passados (o de Cimino e "As Portas do Céu"). Mas percebeu-se logo que era em tom menor, sem o sentido operático de outrora. Há, definitivamente, um défice de carga mítica. E verdade seja dita: "Gangs..." mostra menos um cineasta a lutar pela sua visão do que um realizador, a quem chamam "o mestre do cinema americano", a mover-se nas águas da narrativa "mainstream", num gigantesco cenário em estúdio (um bairro de Manhattan, no século XIX), a procurar o reconhecimento (oficial, o Óscar) que nunca teve. Se calhar vai ter este ano, o que seria uma ironia (como escreveu o argumentista e romancista William Goldman, uma das vozes dissonantes no coro de consagração oficial de Scorsese), se calhar até uma crueldade para quem já viu ignorado, por Hollywood, uma obra-prima, "O Toiro Enraivecido". Mas não há que lamentar por ele: Scorsese já disse (à revista "Sight and Sound") que quis tentar a narrativa, e que isso lhe foi especialmente custoso. Podemos acrescentar: movimenta-se nela como se vestisse um espartilho.

dickens e mad max.

Anos 60 do século XIX, América à beira da guerra civil: a zona mais pobre de Manhattan, Five Points, é campo de batalha entre grupos étnicos pelo domínio das ruas. A este cenário, em 1860, chegavam semanalmente 15 mil imigrantes irlandeses, católicos, que eram recebidos - repudiados - pelos "nativistas", os protestantes, descendentes dos colonos ingleses e holandeses. O clímax (do filme e deste período, dos mais selvagens da história da cidade) foram os chamados Draft Riots, actos de insurreição civil, de protestos contra a Conscription Act de 1863, que chamava os homens para lutar na guerra abolicionista de Lincoln a não ser que pagassem 300 dólares. Foi a escalada do ressentimento social (os mais pobres eram prejudicados), do ódio racial (era em nome da abolição da escravatura que os homens eram chamados para a guerra) e da xenofobia.

É fácil perceber como este cenário "é" "scorsesiano". Ou que, no percurso de interrogação da memória e da identidade (essa coisa do "melting pot" americano e a diluição violenta e trágica do indivíduo no corpo social) que é a sua obra, "Gangs..." possa ser cena "primitiva". Que nessa sobreposição entre a obra do realizador e a história da cidade, como camadas sucessivas de pele, esta é uma escavação.Isso explicará o risco de um "look" que faz os nova-iorquinos do século XIX parecerem saídos das catacumbas ou da série "Mad Max" (Vic Armstrong, veterano dos filmes de James Bond, coreografou as batalhas e resumiu assim: "Charles Dickens em Nova Iorque cruzado com Mad Max").

A figuração pós-apocalíptica começa por criar uma desorientação. Scorsese fala de "Gangs..." como "um western em Marte". Admite que não quis genérico inicial, para os espectadores mais desprevenidos poderem pensar que entraram para um filme "gore" ("Vampiros", de John Carpenter?) ou passado numa sociedade medieval. Mas o que se arrisca é a caricatura. É que na base de "Gangs de Nova Iorque" não está a pulsão abstracta de Scorsese, coleccionador compulsivo e apaixonado pela história social (alguns filmes seus, como "Casino" ou "Tudo Bons Rapazes", podem ser descritos como listas de factos sociais e de comportamentos), mas uma história de "revenge e romance", um triângulo cujos vértices são Billy "the Butcher" (Daniel Day-Lewis), "nativista", Amsterdam Vallon (DiCaprio), irlandês, e Jenny Everdeane (Cameron Diaz), larápia.

Essa narrativa, onde se cruzam, por um lado, a busca de uma figura paterna (é isso que faz Amsterdam chegar a Billy) e, por outro, um desafio e vingança (Amsterdam quer vingar a morte do verdadeiro pai, às mãos de Billy, e disputar-lhe os afectos de Jenny), decididamente criou dificuldades ao realizador. Não chega a estar habitada, sequer: DiCaprio e Diaz são muletas de "casting" (eles é que parecem ter entrado no filme errado) e a selvajaria de Day-Lewis, circense, como um fabuloso número de trapézio, é a única possibilidade de investimento emocional do espectador. Mas sem nada em seu redor, Day-Lewis fica a desenvolver uma série de números, piscadelas de olho ao espelho (que somos nós). Como um simulacro de fulgores do passado. Como Travis Brickle/Robert de Niro, "are you talkin' to me?".

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