Torne-se perito

O mistério soviético de Prokofiev

A "Pravda" deu a notícia do falecimento de Sergei Prokofiev (1891-1951) com um atraso de cinco dias; a morte do que era internacionalmente o mais célebre artista "soviético" tinha sido ofuscada por outra, a de Estaline, no mesmo dia 5 de Março. A coincidência torna-se perturbante quando temos presente que os cânones estalinistas, pelos quais velavam Jdanov e o secretário da União dos Compositores Khrenikov, vinha ocasionando um persistente efeito de "ofuscamento" de Prokofiev. Depois do seu regresso à União Soviética, em 1936, Prokofiev conhecera alguns êxitos, como o bailado "Romeu e Julieta", "Pedro e o Lobo", a Sétima Sonata para piano e a Quinta Sinfonia, bem como as músicas para os dois filmes de Eisenstein, "Alexandre Nevski" e a 1º parte de "Ivan, O Terrível", mas também sucessivos dissabores e mesmo humilhações, não apenas por obras que manifestavam a persistência das suas características mais vincadamente "modernistas", caso da Sexta Sinfonia, mas até por aquelas em que se procurar sintonizar com os cânones do "realismo socialista", como a Cantata para o 20º Aniversário da Revolução de Outubro ou as óperas "Semyon Koto" e "A História de um Verdadeiro Homem" - para além de se ter confrontado com a impossibilidade de ver montada a mais ambiciosa das suas óperas, "Guerra e Paz", segundo Tolstoi.Que ele tenha conhecido tais dissabores e humilhações não surpreende tanto como a sua relativa atitude de indiferença e sobretudo, mistério maior, as razões do seu retorno à União Soviética. Porque voltou um dos mais célebres artistas russos que depois da Revolução de Outubro se radicaram no Ocidente?O exílio de Prokofiev não foi político - ele não era um "russo branco", possibilidade que se poderia sim colocar em relação a um Stravinsky e também não tinha um contencioso com o novo regime, "o governo de Lenine", como ele diz que era nomeado na primeira referência que lhe faz na sua autobiografia. Mas também não era de modo algum um "autor soviético" e por isso a caracterização só pode ser empregue em relação a ele com muitas aspas. O mistério, porque de um mistério, de uma questão não esclarecida efectivamente se trata, é político-cultural mas também pessoal. Prokofiev não seria exactamente um "dandy", como nalguns entendimentos poderá parecer um Stravinsky (ainda ele), mas o seu estilo de vida, pessoal e familiar, tinha o seu quê de petulante. Quando em 1927 o compositor decidiu fazer uma viagem à União Soviética, à "Urssia" como lhe chamava, fez questão que essa viagem se fizesse num "comboio tão luxuoso quanto possível" - "Ir visitar os 'proletários' é digno do Expresso do Norte", anotou ele na entrada correspondente a 13 de Janeiro, do diário da visita que manteve, um documento que só veio a ser conhecido em 1991, depois do filho Oleg o ter encontrado entre os arquivos da mãe, Lina, a primeira mulher de Prokofiev. A "questão soviética" na vida e obra de Prokofiev não deixa de ser determinante, apesar dele próprio, que com uma indiferença e mesmo petulância consideráveis se terá pensado exteriormente a ela. E tem tanto relevo que a saída da Rússia em 1920 e o regresso em 36, determinam os três períodos com que é usual considerar a sua trajectória: "russo", "ocidental" (sobretudo parisiense) e "soviético".Sergei Prokofiev foi um "menino prodígio" como pianista e compositor. Escapou aos seus primeiros mentores, os compositores Glazunov, Taneiev, Gliére e Liadov, ou cansaram-se eles de um talento que não compreendiam. Rapidamente se insinuou nos círculos modernistas de Moscovo e sobretudo São Petersburgo, e no final de 1908, aos 17 anos portanto, tem já no seu catálogo uma obra que não só permanecerá no repertório de pianistas como é uma primeira importante definição do seu carácter, mesmo do que no futuro será a sua "aura", a "Sugestão Diabólica". Logo depois a Tocata e "Sarcasmos", ou os dois primeiros Concertos para piano, confirmam a sua proeminência. A estreia da Suite Cita é um escândalo, pequena repetição do outro, grande, o da estreia parisiense de "A Sagração da Primavera" de Stravinsky, obra com a qual a de Prokofiev se queria obviamente "medir" - a relação com o outro autor russo, nove anos mais velho, seria sempre de desconfiança, eventualmente mesmo rivalidade. Para quem já tivesse fixado a reputação modernista do compositor e prodigioso pianista (note-se que Prokofiev apenas tocava as suas próprias obras), o ano de 1917 traria uma considerável surpresa, a Sinfonia nº1, "Clássica", tomando Haydn como modelo. Curioso retorno ao passado (ou tal aparentando) num ano que seria também o da Revolução de Outubro.Foi uma Revolução com a qual, é caso para dizer, não se deu mal. Na efervescência cultural dos primeiros tempos, o Comissário para a Instrução (e Cultura), Lunacharski, acede em deixá-lo partir em viagem ao estrangeiro: "se você é um revolucionário em música, é um revolucionário", relataria Prokofiev ter-lhe dito Lunacharski. Quando voltou à "Urssia" em 1927, reencontra-se com o comissário do povo, que lhe aponta o exemplo de Maiakovski e da Frente de Esquerda, a LEF, uma das tendências da "agitação e propaganda" culturais ainda florescentes, já estava Estaline no poder. Contudo, Prokofiev também não seria tão incauto que não anotasse que o seu diário devia ser mantido prudentemente, pois poderia ter "observações contra-revolucionárias". Mas o poder soviético poderá também não ter sido indiferente a que, regressado a Paris, Prokofiev tenha composto para os "Ballets Russes" de Diaghliev a música de "Le Pas d'Acier", escândalo em Paris, olhado como "bailado bolchevique". O que nunca se esclarecerá serão as razões do regresso em 1936, depois já de uma segunda viagem em 1932, e de um trabalho que escrito ainda em Paris, em 1933, é a sua primeira obra "soviética", a música para o filme "Tenente Kijé". Na Autobiografia, Prokofiev descreve a mudança em 36 como se tratasse de uma simples nova ida que a certa altura se tivesse tornado definitiva. Ainda fez viagens ao estrangeiro - em 1938 em Hollywood, onde o realizador Rouben Mamoulian organizou em sua honra um jantar em que comparecem, entre outros, Mary Pickford e Marlene Dietrich, tal era a celebridade de Prokofiev. Mas quando dessa viagem, os filhos tinham ficado na União Soviética e não voltar estava fora de questão. Nunca mais sairia.Prokofiev teria a imagem modernista de um "iconoclasta" mas queria também ser reconhecido e popular - como o confessou a propósito da Sinfonia "Clássica". À falta de elucidação do mistério, é possível que Prokofiev, que valorizava fortemente a autenticidade composicional (o que era razão dos seus sarcasmos para com o neo-classicismo de Stravinsky - outra vez este!) tivesse verdadeiramente suposto que a sua música devesse ser "compreensível" pelas massas, como afirmou nalguns momentos. Mas então o mistério torna-se maior quando não há dados que permitam supôr que Prokofiev tenha aderido politicamente ao regime ou que tenha procedido por artimanhas, e no entanto escreveu que na inenarrável Cantata para o 20º Aniversário da Revolução de Outubro, considerando que "a língua de Lenine é tão expressiva, viva e convincente", "não quis transcrever os seus pensamentos em versos, preferindo ater-me ao texto original e empregar as próprias frases"! O que não lhe valeu aliás, porque a obra foi tida por demasiado complexa para ser executada."Romeu e Julieta", "Alexandre Nevski" e a primeira parte de "Ivan, O Terrível" foram certamente sucessos soviéticos, mas no caso de "Nevski" nem isso obstou a humilhação - a equipa do filme foi agraciada com o Prémio Lenine sem menção ao compositor, que viria sim a receber o "galardão" com a Sétima Sonata. As duas óperas conformes ao "realismo socialista", "Semyon Koto" e "A História de um Homem Verdadeiro", foram, a primeira postergada de um ano pela prisão do encenador Meyerhold, a segunda mantida por estrear, depois de um ataque no governamental "Izvestia". A segunda parte de "Ivan, O Terrível", suspeita a Estaline, ficou interdita, e o grande projecto de "Guerra e Paz", que presumivelmente deveria ser encenado por Eisenstein, ficou igualmente por estrear. Os destinos de Maiakovski, suicida em 1930, de Anna Akhamatova (da qual Prokofiev tinha musicado cinco poemas, o seu único ciclo de melodias importante), banida, do seu próximo colaborador Meyerhold, morto na prisão, mesmo de Eisenstein, deixaram-no aparentemente imperturbável - e até mesmo, estava já o músico casado com Myra Mendelssohn (que para a posteridade não se livrará da suspeição de conivência com a KGB), o degredo para a Sibéria da primeira mulher, Lina Prokofiev!Foi também impávido, ao que parece mesmo desatento, que em Janeiro de 1948 ouviu Jdanov pronunciar o seu nome, com o de Chostakovich e outros, como exemplo de "formalismo em música", condenação ratificada pela resolução do Comité Central de 10 de Fevereiro (que Álvaro Cunhal, sob o pseudónimo de António Vale, se encarregaria de "importar" para Portugal, acusando Lopes-Graça que, ironia da História, viria muito depois a integrar o panteão de glórias do PCP). A sua autocrítica exprime o "reconhecimento" ao Comité Central, agradecendo as directivas que "me ajudarão na minha busca dos meios de expressão compreensíveis porque próximos do povo, numa linguagem musical digna dele e da nossa grande pátria"; nada tem do drama pungente das "autocríticas" de Chostakovich, nem há mínima razão para supor que houvesse uma sua sincera "adesão" aos "ideais" do socialismo estalinista. Que um autor da grandeza de Prokofiev se tenha acomodado às humilhações de que foi repetidamente objecto é um mistério.

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