Patmos no Bornéu

1 - Ilusão de percepção ou falso movimento da memória, o fenómeno é bem conhecido.Um olhar, uma curva, uma recta levam-me (ou obrigam-me) a querer reter um nome associável a eles ou dono deles. Nome nunca antes ouvido, nome desconhecido. Pode também ser um poema, um quadro, um filme. Nunca ninguém me tinha falado desse poeta, nunca vira sequer uma reprodução desse pintor, nem em revistas especializadas lera menção ao realizador. Mas quando o nome assim passou de debaixo da língua (onde todos estão) para o ponto mais frenético dela, parece-me, de súbito, que toda a gente só fala da pessoa que acabei de encontrar e que todos descobriram quanto eu descobri.Abro um livro e o nome está lá; vou na rua e ouço uns estranhos citá-lo; recordo um vivo ou um morto e recordam-me, a propósito ou a despropósito, esse ou essa que são minha mais recente companhia.Depende do ego de cada qual, a ressonância dessa simultaneidade. Ou me louvo a glória de ter descoberto o ignoto, antes que todos os outros o descobrissem ("em verdade, em verdade vos digo, fui eu o primeiro"), ou me flagelo pela minha ignorância, que me fez desconhecer até tão tarde o renomadíssimo ilustre.Eu sou mais do primeiro género. Quando tal me aconteceu, reclamei (e reclamo) direitos de autor. Mesmo quando a história não me dá razão, rememoro a putativa paternidade e, neste caso, a feia palavra tem certeira aplicação. O melro não era apenas negro, vibrante e luzidio. Sobretudo, o melro eu conheci-o. E conheci-o antes de Guerra Junqueiro e do padre-cura. O melro é meu.2 - Pensei um bom bocado nisto tudo, quando, há dias, no Thyssen de Madrid, os passos me levaram até diante um velho conhecido: Cosmè Tura, pintor de Ferrara, nascido cerca de 1430 e que morreu em 1495. Tratava-se de um pequeníssimo quadro (27cmx32cm) com o título "São João Evangelista em Patmos".Razoável conhecedor de pinturas e pintores, desde assaz tenra idade (como, noutras crónicas, sobeja e narcisistamente tenho contado), nunca ouvira tal nome em vida minha, até àquela manhã de 1958 em que entrei, pela primeira vez, no Louvre. De súbito, de entre dezenas de idolatradíssimas figuras, que há muito mais de dez anos eu conhecia de retratos e postais, e que nesse dia vi, pela primeira vez, em carne e osso, abriu-se-me numa parede, em semicírculo escuríssimo e disforme, uma "Pietà" ("Compianto sul Cristo Morto") que era a mais convulsa e a mais revolta de quantas representações dessas eu conhecia. Autor: Cosmè Tura, que, na mesma data, me foi apresentado como Cosimo Tura.Convém explicar, aqui chegado, que nestas coisas eu fui e sou bastante nominalista e que muito boa gente me apanhou com a boca na botija de olhar para a legenda, antes de olhar para o quadro, reforçando, ou moderando, segundo ela, o meu ímpeto admirativo ou desiludido. Razão de sobra para me darem mais crédito quando não tenho nomes a que me agarrar e só a imagem me transporta. Naquele dia, perante aqueles verdes e aqueles castanhos, e sobretudo perante aquelas mãos e aqueles pés, eu tinha decidido que descobrira um dos maiores de sempre. "Coup de foudre" total e à primeira vista.Mais adiante, os meus olhos mo reconfirmaram. Noutra sala, muito esguio e pétreo (quase tanto escultura como pintura), um Santo António, cinzentíssimo, desarmonizava-se de um dourado velho. Do corpo só se viam a cabeça, as mãos e os pés. Mas era a mesma tortura, a mesma maceração. O cristianismo como religião dos esfolados vivos.Falei a toda a gente, e muito mais a certa gente, de Cosimo Tura. Procurei livros, fontes e não os encontrei. Aprendi umas generalidades, comecei a sonhar com Ferrara (Antonioni estava a nascer), mergulhei na história da Casa d'Este, mas nenhum dos diamantes do Palácio me levou a uma monografia sobre o pintor, coisa que os meus mais fiáveis livreiros me diziam não existir.3 - Valha a verdade, eu não exagerava tanto como hoje se pode pensar. Se Tura não era tão desconhecido como eu imaginava, a reputação dele, há 45 anos, estava longe de ser a que hoje é.Vasari vivera-lhe a vida, como eu também aprendi em 1958, mas dera-lhe como mestre um misterioso Galasso, que pode ter sido bem notável, mas que, como tantos outros, levou sumiço. No século XIX, Venturi interessou-se bastante por ele e tentou a sua reabilitação, contra muitos contemporâneos que lhe detestavam o que tanto me atraiu: o excesso e o desenfreamento.Mas só em 1933, com a primeira grande exposição dedicada à Escola de Ferrara, Longhi lhe deu um lugar central na evolução da pintura italiana no século XV. Em 1933 eu ainda não tinha nascido? É bem certo. Mas a fama do pintor, que eventualmente decorou com as alegorias dos meses e dos signos astrológicos o Palácio Schifanoia de Ferrara, não passou dos iniciados para o vulgo ao ritmo de Vermeer e também é bem verdade que em 1958 nenhuma monografia lhe fora dedicada.Tal só começou a suceder nos anos 60 e 70, depois de mim, quando eu também, em Londres ou na América, em Veneza ou em Florença, lhe descobria mais uma dúzia de obras-primas, com a marca inconfundível de autor. Até que, em 1974, cheguei, pela primeira vez, a Ferrara. Abril e Cosimo Tura. Nesse ano, aprendi que não era Cosimo, mas Cosmè e que a minha "Pietà" de Paris era o topo de um dos mais lendários polípticos do século XV; o "Políptico Roverella", do nome do médico do Papa que terá encomendado a obra para a sua sepultura. O políptico maravilhou as gentes de Ferrara, na Igreja de San Giorgio fuorí le Mura, até 1709, ano em que os prussianos, cercados pelos tropas papais, se refugiaram no templo. O pontífice decidiu as coisas a seu modo: a canhão. E do políptico, excepto pequenos fragmentos, hoje dispersos por aqui e por acolá, só ficou a "Pietà" de Paris e a "Nossa Senhora no Trono com o Menino e Anjos Músicos", que é hoje uma das maiores glórias da National Gallery de Londres.Porque não fui só eu que mudei. No Louvre e na National Gallery, nos anos 80 e 90, as obras de Tura despregaram-se de paredes secundárias e ocupam hoje o primeiro plano, entre Mantegna e Antonello, Masaccio e Piero della Francesca.4 - Mantegna e Piero estão ao lado, sem dúvida. Do outro, está Van der Weyden, que fez longas estadas na corte dos Este. O historicismo de Mantegna, o universalismo formal de Piero, o expressionismo de Van der Weyden. Tudo isto e os segredos do mundo alquímico e da astrologia, de que Ferrara foi "roccaforte". A matéria a transformar-se ou a corromper-se, num espaço que já não é este espaço e num tempo que já não é este tempo.Mas, como em 1958, voltei a abismar-me, em 2003, com este São João Evangelista, de datação incerta, agora no Thyssen (aliás, foi em 1958 que Ruhmer o datou entre 1470 e 1475, mais ou menos ao tempo do "Políptico Roverella").São João não é nem o jovem que costuma ser, eternamente prolongando o discípulo que o Senhor amou, nem o velho de Patmos, aquele que, segundo a lenda, podia bem não ter morrido. Com as sempiternas mãos imensas, com os sempiternos pés imensos, semideitado num chão verdíssimo, lê um livro ou adormeceu à leitura do livro, certamente o Apocalipse. Pousada em cima do seu braço direito, a águia joanina, negríssima e de asas todas abertas, centro esvoaçante e ameaçador de tão urânica visão, dedica ao livro uma atenção acutilante, que contrasta com o crispado desalinho do irreconhecível apóstolo, com a sua grave descalma.Depois, tudo é paisagem. O céu onde já não há nuvens, mas leves círculos astrais; as colinas de um planalto lunar; os rochedos megalíticos de outras galáxias.De uma das Musas, da National Gallery de Londres, escreveu Longhi que era "terrível e pungente como um ídolo do Bornéu". Como esse ídolo, voltei a ver S. João em Patmos. Mas donde Cosmè Tura o deu a ver, eu não evoco florestas luxuriosas, mas o lugar chamado em hebreu Harmagedôn. "E quando o Cordeiro abriu o Sétimo Selo, fez-se um silêncio no céu que durou cerca de meia hora." Neste quadro, o silêncio está-se a acabar.

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