Amílcar Cabral: "Uma pessoa assim só vai surgir daqui a cem anos"

Amílcar Cabral será hoje lembrado em Cabo Verde e na Guiné-Bissau. O homem que conduziu ambos os países à independência nasceu em Bafatá, na Guiné-Bissau de pais cabo-verdianos. Se fosse vivo, completaria em Setembro 79 anos de idade. Mas é o trigésimo aniversário da sua morte que marcará hoje, nos dois países, o Dia dos Heróis Nacionais.Cabral foi assassinado, na noite de 20 de Janeiro de 1973 em Conacri, já depois de ter anunciado que iria proclamar a independência da Guiné-Bissau. Sem ele, mas como era seu desejo, a Assembleia Nacional Popular proclamava o Estado independente da Guiné-Bissau, a 24 de Setembro de 1973. Para trás, ficava uma década de luta, que viu crescer toda uma geração - de guineenses e cabo-verdianos - marcada pela efervescência dessa época. Pessoas que hoje, para além do maior de todos os sonhos, o da independência, não vêem concretizados os ideais de Amílcar Cabral. Falam de "decepção". Mas não relativamente àquilo que viria a ser o fim da unidade entre os dois países, desejada por Cabral e reflectida no carácter supranacional do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) mas a que o golpe de Estado de 1980, na Guiné, liderado por Nino Vieira, veio pôr fim.São outras as razões da desilusão. "Não era isto que ele queria. Ele queria acabar com a miséria, dar educação e saúde à população. Isso não existe," diz a guineense Teresa Ramos. "Mas haveremos de lá chegar. Como eu, é toda a minha geração que está decepcionada, com a evolução dos acontecimentos, sobretudo na Guiné-Bissau". Teresa Ramos era uma criança quando a sua mãe, a ainda hoje destacada dirigente do PAIGC, em Bissau, Francisca Pereira, partiu para a guerra na Guiné, como enfermeira. Teresa ficou entregue à Escola-Piloto de Conacri até completar o 5° ano. Depois, como a maioria dos seus colegas, prosseguiu os estudos secundários na Escola Internato Internacional, de Ivanovo, a 300 quilómetros de Moscovo. Amílcar Cabral fazia questão que todas as crianças prosseguissem outros estudos para além daquilo que a Escola-Piloto podia oferecer, mesmo que para isso tivessem que ir para a ex-União Soviética. "Foram tempos felizes," diz Teresa Ramos com o olhar triste. Hoje é médica em Lisboa. Tem 42 anos e alguma dificuldade em falar do passado. Mas porque chora? É a recordaçao desses tempos? Ou é a pessoa? "É a pessoa," diz enxugando as lágrimas. "É inacreditavel que tenhamos estado tão perto de uma pessoa tão grande, e que não nos tenhamos apercebido disso enquanto ele era vivo. É inacreditavel a morte dele!" exclama incrédula. "Uma pessoa assim, na Guiné-Bissau só vai surgir daqui a cem anos!" Uma pessoa assim, como? "Com aquele carisma, aquela coragem de dizer o que outras pessoas tinham medo de dizer, aquela honestidade e força de lutar pelos ideais, aquele amor pelas crianças, e aquele espírito de sacrifício pela geração a seguir. Ele adorava as crianças!" Também a marcou a disponibilidade de Cabral para comparecer a todos os eventos sociais. "Ele assistia, por exemplo, a todos os casamentos. Ele queria que as pessoas tivessem uma vida, na medida do possível, normal". Sempre que estava em Conacri, onde vivia, Amílcar Cabral visitava, de manhã cedo, a Escola-Piloto. No "colégio do partido", criado em 1965, residiam e estudavam os filhos de combatentes ou orfãos de guerra. Conviviam diariamente com o líder no auge da acção armada do PAIGC, iniciada em 1963. Mas foi só depois da sua morte, que a maioria destes jovens tomou consciência da sua verdadeira dimensão, como revolucionário e político. É sobretudo o lado humano de Cabral que melhor recordam. "Ainda sinto saudades de Cabral. ès vezes, ainda o vejo nos sonhos, mas sempre o vi vivo - nunca morto - do jeito que eu o conhecia". A cabo-verdiana Teresa Araújo, uma das ex-alunas contactadas pelo PòBLICO, lembra-se de Amílcar Cabral como um "segundo pai", que se interessava pelo bem-estar e o percurso académico de cada um dos mais de 200 alunos da escola. Recorda o envolvimento de Cabral nas actividades culturais, "na visão que ele tinha de resistência através da cultura" e a sua vontade de incutir nos mais jovens "o amor pela sua terra, pela sua cultura". E fazia-o sem nunca negar a ligação a Portugal e o ensino do português. "Era um tio carinhoso e muito exigente comigo. Obrigava-me a falar português. Era uma pessoa com muita autoridade. E ele nem era alto. Mas sabia impor-se naturalmente," lembra com um sorriso Patrick Cabral, sobrinho de Amílcar e filho de Luís Cabral. Foi com a ideia de formar os quadros que deveriam conduzir os destinos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, como países independentes, que o líder do PAIGC fundou a Escola-Piloto. "Foi com essa visão de futuro. Cabral via sempre mais à frente do seu tempo," continua Teresa Araújo. "A ideia era preparar pessoas para a reconstrução nacional". E era também proteger as crianças separadas dos pais devido à guerra contra as forças coloniais portuguesas. Havia crianças das zonas libertadas e das zonas de combate. Eram, por vezes, crianças que os soldados encontravam perdidas no mato, sozinhas. "As crianças são a razão da nossa luta e as flores da nossa revolução", costumava dizer Cabral."E isso que ele dizia traduzia-se na maneira como éramos tratados, naquelas circunstâncias, com todo o cuidado que se deve ter com uma flor," diz Teresa Araújo. "Apesar das dificuldades, daquele ambiente pesado da guerra, nós éramos sempre poupados. Com a sua presença permanente, ele fazia tudo para minimizar o nosso sofrimento". O percurso de Teresa Araújo é semelhante ao de muitos filhos de combatentes da luta pela independência. Os seus pais, José e Amélia Araújo, fugiram à PIDE, de Lisboa, onde faziam parte do círculo dos movimentos de libertação. Em Conacri, juntaram-se a Amílcar Cabral e ao PAIGC. José Araújo integrou o bureau político do partido, como responsável da Informação e Propaganda. Amélia Araújo dirigia a Rádio Libertação, criada em 1967. Como locutora das emissões em português, era ela quem lia os textos em que Amílcar Cabral desmascarava o que dizia ser a política enganosa das autoridades coloniais e denunciava a fome em Cabo Verde. A "intolerância à injustiça" que conduziu Amílcar Cabral a lutar pela independência dos dois povos, é a mesma que alunos da Escola-Piloto recordam como um dos principais traços da sua personalidade. No mundo em que vivem actualmente, na Guiné, Cabo Verde ou Portugal, não reconhecem os ideais e o "espírito de militância e entrega a uma causa" que Amílcar Cabral lhes transmitiu, nem a mesma honestidade, frontalidade e disciplina que tanto os marcou. E quando se lhes pergunta se Amílcar tinha algum defeito, a resposta é quase sempre: "Duvido".

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