As Mãos do Pianista

Os sobreviventes, como o pianista Wladyslaw Szpilman, não escapam sem sorte, mas estão para lá da sorte, são detentores de um saber especial. Na maioria são jovens. Mas, diz o historiador Raul Hilberg, decisivo é o seu perfil psicológico. Três traços de carácter marcam a diferença: o realismo, a rapidez de decisão, a obstinação com que se agarram à vida.

Não é uma história de heróis. O pianista, Wladyslaw Szpilman (1911-2000), pertence a uma outra classe de homens, distinta e muito rara, os sobreviventes da Shoah.

Na Europa ocupada por Hitler, ou em países aliados dos alemães, escaparam à morte pouco mais de um milhão de judeus. Cerca de 5,6 milhões foram exterminados. Na Polónia, a taxa de extermínio foi mais elevada: de cerca de 3,25 milhões de judeus polacos, três milhões morreram. A taxa de sobrevivência do gueto de Varsóvia, onde a partir de 1940 foram emparedadas meio milhão de pessoas, é ainda mais baixa: depois das maciças deportações para o campo da morte de Treblinka, há a revolta de Abril de 1943, que deixou raríssimos sobreviventes. Milhares de pessoas são fuziladas. Muitos suicidam-se para não serem apanhados. Alguns conseguem fugir pelos esgotos e juntam-se à resistência polaca. O gueto é arrasado.

Szpilman fugira do gueto em Janeiro de 1943, aproveitando um período em que esteve a trabalhar numa obra alemã no exterior dos muros, depois de toda a sua família ter sido deportada para Treblinka. Fora miraculosamente arrancado ao comboio da morte por um polícia judeu.

Szpilman não foi um resistente típico. Correu riscos. Contrabandeou explosivos para dentro do gueto. Ofereceu-se para a resistência. Os resistentes não precisavam de um pianista. Fugiu, como um salto para o escuro.

O seu itinerário através da Varsóvia ocupada, de refúgio em refúgio, primeiro com a ajuda de amigos e resistentes polacos, depois completamente só, são dois anos de face-a-face com a morte, a morte iminente, às mãos dos alemães, pelo fogo, pela fome.

Os sobreviventes.

Raul Hilberg, historiador do Holocausto, estudou a figura do sobrevivente judeu ("Perpetrators Victims Bystanders", Harper Collins, 1992). Não são exactamente os que se salvaram. Hilberg define uma categoria especial e restritiva, em função da exposição ao risco e da profundidade do sofrimento. Trata-se das sobrevivências impossíveis.

"Sou dos raros a ter sobrevivido, o mais espantoso não é que tenha resistido, mas que não tenha sido destruído. Sete vezes vi a morte cara a cara e ainda mais vezes estranhas circunstâncias a afastaram de mim subitamente, como um relâmpago, sem que eu o saiba por quê ou o compreenda", testemunhou o grego Erikkos Sevillias.

Os sobreviventes não escapam sem sorte, mas estão para lá da sorte, são detentores de "um saber muito particular".

Na maioria são jovens, entre a adolescência e os 30 anos. "Mas o elemento decisivo era o perfil psicológico dos sobreviventes. Observam-se neles três traços de carácter que permitem entrever onde se situava a diferença: o realismo, a rapidez de decisão, a obstinação com que se agarravam à vida" (Hilberg).

Não é só o império do perigo. É "apanhar a sorte num salto". Isaac Rudnicki, um adolescente do gueto, passa num depósito alemão e rouba instintivamente duas armas que esconde em casa, para terror da família. De passo em passo, sobrevive a tudo, à revolta do gueto e à insurreição de Varsóvia, e acaba em Israel, com outro nome: o general Yitzhak Arad.

O sobrevivente quer absolutamente viver. "Uma imensa, desmesurada concupiscência animal da vida a qualquer preço. Sobrevivera a uma noite num edifício a arder, o principal era agora salvar-me fosse como fosse", escreve Szpilman. Na véspera tentara suicidar-se para não morrer queimado.

O checo Rudolf Vrba, na sua transferência de Lublin para Auschwitz, encontrou dois polacos que o aconselharam a atirar-se para o arame farpado: os alemães disparariam, tudo estaria acabado. "Estarei vivo e vós mortos", respondeu possesso. Vrba fez tudo, comeu serradura e bebeu água dos esgotos. Ele sobreviveu, os polacos morreram.

Todos eles tiveram "sorte" depois de terem tentado salvar a vida, resume Hilberg.

O espectador seguirá no filme de Roman Polanski a longa peregrinação (simplificada) de Szpilman por apartamentos, águas-furtadas e telhados das ruínas de Varsóvia. Vários amigos polacos o salvam sucessivamente, também de depois de outros tantos terem ficado indignados com o seu apelo: a ajuda a um judeu era irremediavelmente punida com a morte.

Hosenfeld, o alemão. Faltava o encontro. Uma noite em que desesperadamente procura comida num edifício meio em ruínas é apanhado por um oficial alemão, "alto e elegante, que estava encostado ao balcão da cozinha, com os braços cruzados" e lhe pergunta: "Que diabo faz você aqui?"

Szpilman finalmente desiste, decide morrer, anunciando que já não sairá dali a preço nenhum. Mas o que o alemão quer é saber quem é o estranho judeu fugitivo. A noite termina com o pianista a tocar o "Nocturno em dó menor" de Chopin num piano desafinado.

O alemão passa a levar comida a Szpilman, prestes a morrer de fome. Era capitão e chamava-se Wilm Hosenfeld. Após a indizível banalidade do mal, obsessivamente retratada no livro e no filme, uma figura redime os alemães. Hosenfeld era um professor primário que fizera já a I Guerra Mundial. Fragmentos do seu diário, publicados em anexo do livro, indiciam um homem perturbado, patriota e decepcionado pelo nazismo. Nada fez em grande escala. Não conspirou contra Hitler. Salvou meia dúzia de pessoas em actos singulares. Em cada um deles se serviu das suas prerrogativas de oficial alemão e em todas jogou a própria cabeça. Era simplesmente um "justo".

Depois da guerra, Szpilman quis encontrar Hosenfeld, que através de um violinista lhe fizera um apelo. Em vão. Em 1950, Szpilman procurou em segredo o omnipotente chefe da secreta comunista polaca, Jakub Berman. Em vão uma vez mais. Hosenfeld estava num campo de prisioneiros na Rússia, onde os soviéticos consideraram insultuosa a sua defesa de que tinha salvo judeus. Morreu, em condições miseráveis, quase louco, em Estalinegrado, em 1952. Não era um sobrevivente. E como figura de redenção deveria morrer.

Os sobreviventes têm algo de comum, anota Hilberg. Entram no mundo do pós-guerra sem uma doença ou uma incapacidade física duradoura. É natural, de outra maneira não teriam sobrevivido. Arrastam por vezes um outro mal, a culpa de viver, tão presente na obra de Primo Levi.

Mas em Szpilman há uma derradeira mola. Ao longo do livro, perpassa o terror de ver as mãos estropiadas. Talvez mais do que viver, ele quer salvar as mãos, as mãos do pianista.

Ainda aqui sobreviveu. Depois de salvo, iniciou uma longa carreira de concertista. Morreu em 2000.

P.S. - No posfácio de "O Pianista" (Editorial Presença, 2002), o cantor Wolf Biermann (dissidente do Leste alemão dos anos 70) lembra que o texto foi publicado em 1946 na Polónia e depressa retirado de circulação. Era incómodo o retrato dos canalhas polacos, lituanos e ucranianos, e evidentemente judeus, que lá apareciam. No Ocidente e em Israel, vivia-se a era da resistência e dos heróis. A história foi esquecida. O livro só seria reeditado em alemão em 1998. É um texto distanciado, sem sombra de vingança. Szpilman confessou a Biermann que na versão original polaca Hosenfeld era identificado como austríaco: era intolerável a figura de um redentor alemão.

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