Visita à Casa Pia pela mão do "senhor Poiares"

O ancião atravessa o campo em passos curtos mas rápidos, indiferente às crianças que o contornam com razias medonhas, confiando na sua imunidade. Apesar da algazarra, a presença do mais venerável casapiano vivo não passa despercebida: outra pessoa estragasse assim a finta e o mais certo era que fosse atropelada ou insultada. "Bom dia, senhor Poiares", cumprimenta um rapaz com cerca de dez anos, cabelo "à Figo" moldado pelo gel, argola dourada na orelha esquerda. "Bom dia, meu querido", retribui o homem de 88 anos, figura antiga de gravata de lã, chapéu e sobretudo, confortando-o com uma festa na cabeça. No Pátio das Malvas, coração do badalado colégio de Pina Manique, o maior da Casa Pia, vive-se a agitação normal de mais um dia de aulas. Por todo o recinto pululam bolas e assiste-se a um trânsito alegre de crianças de todas as cores, bem vestidas e saudáveis, com as mochilas às costas. Ninguém diria tratarem-se de miúdos-problema, a maioria dos quais órfãos ou com famílias desestruturadas. Nos diálogos de recreio, a palavra "Bibi" já não se ouve como nos dias que se seguiram à publicação do escândalo. "Felizmente", assinala Augusto Poiares. "Isso até me faz estremecer todo por dentro. Foi a maior desgraça que nos aconteceu", confessa, alterado, prosseguindo a marcha. À sua passagem, os poucos alunos fumadores escondem os cigarros e abafam palavrões; na entrada do pavilhão onde decorrem as aulas teóricas, um par de namorados rectifica a pose.O homem desvaloriza estas ousadias e esclarece: "Eles a mim têm-me respeito. O problema é com os professores: no meu tempo, tratávamo-los como pais; hoje, embora não seja como noutras escolas, os professores ouvem das boas", lamenta, sem paternalismo excessivo. O idoso é conhecido de todos. Frequentou a escola na década de 20 e desde então andou sempre metido na vida da Casa Pia, nunca falhando um "3 de Julho", cerimónia em que se comemora o aniversário da instituição, ou uma abertura do ano lectivo: neste tipo de acontecimentos, cabe-lhe sempre a ele lançar os "vivas" à Casa Pia. "É a única vaidade que tenho", costuma dizer.Funcionários, directores e provedores reconhecem a importância do seu exemplo. "Não se recusa nada ao António Poiares", assumiu um alto-responsável da Casa Pia, para quem não há ordem presidencial ou ministerial que se possa sobrepor às pretensões do ancião no que respeita ao rumo da instituição.Não se trata de luxo. Mas as vivendas que albergam os alunos internos estão muito longe das camaratas frias de há umas décadas. No Pina Manique, são cinco, alinhadas perto da zona onde está o campo de futebol de relva sintética, um dos muitos existentes no colégio. Cada casa serve de residência a 20 alunos internos, com idades entre os dez e os 20 anos, normalmente seleccionados de entre os mais carenciados. No lar Martins Correia, nome do célebre ex-aluno, mesmo ao lado de um outro lar que leva o nome do ilustre guia (não existe, aliás, nenhum edifício, fonte, monumento ou pedra, dentro do complexo, que não seja baptizado em memória de um casapiano), quem vai à porta é a responsável pela roupa. Todos os lares têm uma; como todos têm uma cozinheira para preparar o jantar, um monitor residente e três educadores. A mulher que recebe o PÚBLICO, dos seus 60 anos de idade, cumprimenta carinhosamente Poiares, sempre "senhor Poiares", e convida a entrar. A sala já está decorada com a árvore, fitas e coroas de Natal. "Ainda falta o presépio", lamenta a funcionária. O resto da decoração e dos equipamentos não foge ao padrão burguês: sofás e televisão, aparelhagem de som de alta-fidelidade, móveis, estantes, candeeiros, quadros. A cozinha também é enorme, impecavelmente limpa, como todas as outras divisões. Quanto aos quartos, cada um tem, em média, três camas, algumas tipo beliche, e casa de banho privativa; nas paredes, surgem os únicos ícones juvenis, visíveis, do lar: um cachecol da selecção portuguesa de futebol ladeia vários "posters" de carros e um da estrela da música "pop" Shakira.Sérgio, 19 anos, há oito na colégio de Pina Manique, é o actual monitor da casa. Já foi um rufia, já se envolveu "em pequenos roubos", mas agora reabilitou-se. É ele quem olha pela ordem na casa. "Têm-me um certo respeito", diz. As regras estão bem definidas. A alvorada é às 7h00 para a higiene matinal. E às 7h45 toma-se rapidamente o pequeno-almoço porque depois ainda é preciso tratar de várias tarefas antes de começarem as aulas: fazer a cama, lavar a louça, arrumar o quarto são as obrigações domésticas de que estão incumbidos. O regresso ao lar só acontece pelas 19h00, para o jantar. Antes de dormir é ainda "obrigatório" gastar uma hora no estudo. Sérgio garante que a norma é cumprida com regularidade diária e que às 23h00 está tudo deitado com a luz apagada. "Sou eu que a vou apagar", afiança.Durante o dia, o tempo dos internos é passado nos pavilhões do colégio para as aulas teóricas, ou então nas oficinas. Entre perto de duas dezenas de cursos técnico-profissionais, encontram-se, por exemplo, os de serralharia, restauração e relojoaria. Ao contrário do que é frequente acontecer no restante ensino público, aqui parecem não faltar os instrumentos necessários para o treino prático dos educandos. Augusto Poiares interrompe a aula de mecânica automóvel. O mestre Diniz, de volta de um motor, fica a olhá-lo, surpreendido por aquela invasão. "Peço desculpa ao mestre, mas gostávamos de assistir à aula", explica o casapiano, depois de cumprimentar as alunos vestidos com macacões, debruçados sobre as bancadas da oficina. O mestre hesita, receoso da hierarquia, mas acaba por aceder.Poiares inicia, então, uma palestra, que os adolescentes ouvem em silêncio, sobre as virtudes da instituição: "Que, se não fosse a Casa Pia a ensinar-lhes as virtudes da ginástica", ele não teria chegado àquela idade; que "não há outra escola no país" como o colégio de Pina Manique - "que lhe deve a educação, a formação e até a mulher". O mestre Diniz aproveita a deixa: "É preciso é que eles saibam aproveitar o que a Casa Pia lhes dá", remata, antes de continuar a prelecção sobre os cames de transmissão progressiva.De caminho para o colégio de surdos-mudos Jacob Rodrigues Pereira, contíguo ao Pina Manique, entalado entre o Planetário e as vivendas luxuosas do Restelo, Augusto Poiares faz uma breve pausa perto do campo de futebol Cândido de Oliveira (outro célebre ex-casapiano), no largo onde "Bibi" foi filmado a desmentir a SIC. O homem não resiste a quebrar a promessa de não tocar no assunto. "Era aqui que às vezes vinham os carros desses bandidos. Fartei-me de avisar. Os tipos entravam ali pelo portão, que estava quase sempre aberto", desabafa. Ultrapassada "essa situação triste do passado", o moral de Poiares volta a rejubilar quando passa na piscina Mário da Silva - "primeiro nadador olímpico português" -, e depois entra no colégio Jacob Rodrigues. "Isto é notável", espanta-se outra vez, admirando o magnífico edifício térreo, labiríntico e acolhedor, cheio de pátios interiores e com as paredes forradas de cartazes didácticos multicolores. Não se ouve o barulho das crianças, mas elas estão lá, iguais às outras, correndo de um lado para o outro ou empenhadas em trabalhos manuais ou nas aulas.A professora Aida carrega José e dá ordem a um auxiliar para levar Maria. "Estamos a preparar os cenários do teatro de Natal", diz. Numa pequena sala, uma educadora gesticula para três crianças muito pequenas, que a rodeiam felizes, respondendo à interpelação do desenho no quadro ginasticando atabalhoadamente os dedos minúsculos. Terminado o périplo, Augusto Poiares permanece, surpreendentemente, enérgico. "Nem um dia inteiro dá para ver isto tudo", repete, entre o lamento e o orgulho. Ao lado do busto do Intendente Pina Manique, no novo e luxuoso Centro Cultural Casapiano, o ancião comove-se. "Foi este homem que deu a luz a Lisboa. E foi este homem que tirou da miséria milhares de crianças. Para mim, é o maior político de todos os tempos. Não merecia que acontecesse uma coisa destas."

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