TUPAC SHAKUR

A sua morte, que continua a ser discutida, pode ter adensado o mistério em torno da sua figura, mas não explica porque é que um rapper que também era actor, poeta e gangster mantém hoje uma aura maior do que a que possuía em vida. E por que é que vende milhões de discos. Segunda-feira é editado mais um, o 10º álbum de originais, o sexto depois da sua morte, em 1996.

Não pode deixar de provocar uma certa apreensão a publicação, segunda-feira, de "Better Dayz", o 10º álbum da discografia de Tupac Shakur e o sexto que é editado desde o dia em que o rapper foi baleado por quatro vezes, a 7 de Setembro de 1996. Não se trata de um "best of", de recolha de temas registados em palco ou de lados B de singles. "Better Dayz" é um CD duplo cujo alinhamento é composto por faixas originais - não vá alguém duvidar da produtividade "post-mortem" de Tupac Shakur. Sim, esta é a história estranha e ao mesmo tempo representativa de um dos nomes mais singulares daquilo que um dia foi conhecido como "gangsta rap".George Pryce, publicista experimentado que trabalhou de perto com Tupac, comparou-o a Miles Davis, outros dos seus clientes. Ambos tinham uma personalidade dividida o que, segundo Pryce, tinha origem no facto de ambos serem do signo Gémeos. Astrologia à parte, Tupac tanto era considerado terrorista como um dos mais promissores poetas do hip-hop, contradição que nunca foi resolvida.Tupac Shakur terá lido diversas vezes "O Príncipe" de Maquiavel, e assimilado a doutrina de que a moralidade não tem relevância na política, sendo a manha e a fraude justificáveis para serem cumpridos objectivos como a manutenção do poder. Tupac tanto foi considerado um B-Boy machista e um rufia de primeira como actor talentoso. O realizador John Singleton considerou-o um "talento natural, com imensos metódos e filosofias sobre o modo como um papel deve ser representado". As letras dos seus temas tornaram-se conhecidas por incitarem o assassínio de polícias, na mais bela tradição do gangsta rap. Algo muito mais sensacional do que a sua participação no Poetry Circle de Santa Rosa, Califórnia, ou do que o facto de alguns desses textos serem hoje base de análise em cursos na Universidade de Berkeley. "Toda a gente está em guerra com qualquer coisa... Eu estou em guerra com o meu próprio coração", disse, seis meses antes de morrer, num acesso de romantismo que não escondia lucidez. "Todos os negros que mudam o mundo morrem de forma violenta. Não morrem normalmente", confessou em entrevista à revista "Details" gangsters e rappers. Tupac Shakur, ou 2Pac para os amigos, nasceu em 1971. A mãe, Afeni Williams, era activista dos Panteras Negras e ainda o rapaz não tinha acordado do sobressalto de entrar na adolescência e já tinha sido inscrito num curso de teatro. Quando a família se mudou para a Califórnia, Tupac abraçou o tráfico de droga como actividade, o que tornou viável um convite para participar, como bailarino, nos espectáculos dos Digital Underground. A sua ligação ao mundo do espectáculo levou a que, aos 20 anos, tivesse gravado as suas primeiras maquetas. Foram parar aos escritórios da editora Interscope, mas o primeiro êxito de Tupac foi a sua participação como actor no filme "Juice", em 1991. O seu álbum de estreia, "2Pacalypse Now" (1991), vendeu 500 mil cópias. Uma das faixas, "Trapped", foi apresentada em tribunal como o rastilho que levou um rapaz de 19 anos, Ron Howard, a assassinar um polícia texano. Não tardaria muito até que o, na altura, vice-presidente dos EUA, Dan Quayle, declarasse que discos como "2Pacalypse Now" "não tinham lugar" naquela sociedade. Onde mais, então?O segundo álbum tinha por título "Strictly 4 My N. I. G. G. A. Z." (1993), o que escondia o facto de quase todos os seus compradores serem miúdos brancos dos subúrbios americanos. Duas agressões mais tarde, Tupac foi convidado para contracenar com Janet Jackson em "Police Justice", de John Singleton, e depois de ter disparado contra dois polícias à paisana ainda participou no elenco de "Above the Rim". Em Fevereiro de 1994, foi preso por ter atacado os realizadores Allen e Albert Hughes e condenado a 15 dias de prisão, depois destes o terem afastado das rodagens de "Menace II Society". O cadastro de Shakur, que em Novembro de 1993 foi acusado de violar uma fã, apressou o seu abandono da editora Interscope e o ingresso na Death Row Records, companhia discográfica de Suge Knight. Por essa altura, a controvérsia entre o rap praticado na Costa Este e na Costa Oeste, ou Nova Iorque e Los Angeles, estava no auge. De um lado Puff Daddy (hoje, P. Diddy), do outro Suge Knight. Cada um mantinha as suas empresas - Bad Boy Entertainment e Death Row - e os seus pontas de lança - Notorious B. I. G. e Tupac Shakur. Cada um aproveitava uma oportunidade para humilhar o outro. O terceiro álbum de Tupac, "Me Against the World" (1995), tinha entretanto entrado directamente para a tabela da "Billboard", afirmando-o como um dos artistas mais representativos do hip-hop. O que não evitou que tivesse sido condenado por abuso sexual de Ayanna Jackson e sentenciado a quatro anos e meio de prisão. No primeiro dia do julgamento, Tupac foi baleado cinco vezes e as suspeitas de que Puff Daddy e Notorious B. I. G. estariam por trás do acontecimento avolumaram-se. Aproveitando as inúmeras despesas que o artista mantinha com advogados, entrou em cena Suge Knight, empresário de "gangsta rap", que até então tinha gerido a carreira de Dr Dre e Snoop Doggy Dog. Pagou 1,4 milhões de dólares para que Tupac saísse. Dos quatro anos e meio, apenas cumpriu oito meses.Começou a gravar o quarto álbum, "All Eyez on Me" (1996), no dia seguinte a ter saído da prisão. O disco acabou por ser duplo e, convencido de que Puff Daddy e Notorious B. I. G. estavam por trás da tentativa de assassínio de que fora vítima, Tupac voltava a assumir a violência verbal e citava ambos em várias letras, insinuando que tinha ido para a cama com Faith Evans, a mulher de Notorious B. I. G. A 7 de Setembro de 1996, foi baleado em Las Vegas, e não sobreviveu à rajada de tiros. Viria a falecer seis dias mais tarde.legado. Apesar de criticado incessantemente, o "gangsta rap" mantém uma vitalidade assinalável nos EUA. E apesar de ter falecido há quase seis anos, o legado de Tupac continua a ser explorado pela mãe e pela Death Row Records, que entretanto alterou o seu nome para Tha Row Records. O álbum anterior de Tupac, "Until the End of Time", conquistou três discos de platina, o que quer dizer que vendeu mais de três milhões de cópias. Os seus temas continuam a ser fonte de inspiração para artistas como Jay Z e Tony Braxton: ambos samplaram, recentemente, "Me & my girlfriend", de Tupac Shakur, que é citado várias vezes no filme "8 Mile", protagonizado por Eminem. Desde que morreu foram publicados "Don Killuminati: the 7 Day Theory" (1996), "R U Still Down" (1997), uma colectânea "Greatest Hits" (1998) e um disco em parceria (?) com os Outlawz, "Still I Rise" (1999). Em "Better Dayz", as 26 novas faixas resultam de material gravado por Tupac entre 1994 e 1996, a que se juntam rappers como Anthony Hamilton (que participa no primeiro single, "Thugz mansion"), Nas, Trick Dddy, Mya, Ronald Isley, Tyrese e os Outlawz, e produtores como 7 Aurelius (Ja Rule), Jazze Pha (Ludacris) e Frank Nitty (Big Punisher). A produção executiva ficou por conta da mãe e de Suge Knight. O "Intro" que abre o disco não se escusa a comentar o facto de seis anos depois da morte ainda estarem a ser publicados originais a cada ano que passa. Mas este é um disco que assume o lado mais leve de Tupac. A verve permanece notável, mas o efeito gangsta está diluído num álbum de produção clínica. O primeiro single, "Thugz mansion", é apresentado numa versão acústica da responsabilidade de Nas que remete mais para o universo lírico de Tupac do que para o seu passado criminoso. Mas para os apreciadores de batalhas de MCs não são de descartar "Fuck 'em all" ou "When we ride our enemies". Apesar de gravado há quase dez anos, há temas que não acusam a passagem do tempo - peças de r&b como "Mama's just a little girl".A edição de discos promete continuar, até porque das 200 faixas que Tupac nunca teria editado em vida, só metade foram disponibilizadas comercialmente. E os resultados das vendas levam a crer que não demorará muito até ser editado novo disco. No ano passado, as vendas renderam sete milhões de dólares, o que na listagem da revista "Forbes" o coloca em 10º lugar de uma tabela liderada por artistas que já morreram como Elvis, George Harrison, John Lennon, Bob Marley e Hendrix.Porém, a edição de "Better dayz" assume particular importância: as investigações em torno do seu assassinato foram reabertas, muito por conta de um artigo publicado em Setembro no "Los Angeles Times", assinado pelo jornalista Chuck Philips (ver texto ao lado). A peça volta a reacender a questão entre a Costa Este e a Costa Oeste e aponta o dedo a Notorious B. I. G. como estando por trás do homicídio. Também recentemente foi publicado um livro, "Holler If You Hear Me: Why Tupac Shakur Matters", por Michael Eric Dyson, autor de biografias de Martin Luther King e Malcolm X. As circunstâncias da morte de Tupac Shakur podem ter adensado o mistério em torno da sua figura. Mas não explicam porque é que um rapper que também era actor, poeta e gangster, além de acusado de abuso sexual, mantenha ainda hoje uma aura maior do que a que possuía em vida.

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