John Malkovich: "Há quem diga que sou frio e manipulador"

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Em Lisboa, Malkovich explicou por que razão gosta do cinema de Manoel de Oliveira Pedro Inácio/PÚBLICO

Entre as dezenas de pessoas que estiveram no sábado à noite no Hotel da Lapa, em Lisboa, John Malkovich parecia mover-se numa campânula, num outro tempo. Vestido com um fato escuro, sentou-se no sofá, sorriu educadamente, encostou a porta para não ser incomodado pelo barulho.

Ironia e perversidade são algumas das características comuns às personagens que Malkovich tem representado. Estreou-se pela primeira vez na realização. O seu filme chama-se "The Dancer Upstairs" (2002). Nasceu da obra de Nicholas Shakespeare, é interpretado por Javier Bardem e Laura Morante e conta com a participação de actores portugueses (Alexandra Lencastre ou Luís Miguel Cintra). Curta conversa com John Malkovich, 48 anos.
PÚBLICO — Algumas das personagens que tem interpretado vêm da literatura: "Ripley’s Game", "Ligações Perigosas", "O Tempo Reencontrado". "Queres Ser John Malkovich?", onde se representa a si próprio, de onde vem? Do cinema, do teatro?
JOHN Malkovich — A maior parte das pessoas conhecidas, tornam-se parte de um espécie de inconsciente colectivo. Porque quando uma pessoa é conhecida há uma aura mítica ou lenda criada à sua volta. Eu provavelmente tenho um pequeno mito ligado a mim.

A personagem de si próprio?

Nem por isso. Leio coisas sobre mim que não me interessam muito. Mas há quem diga que sou muito frio, e eu não sou frio, mas OK; que sou um intelectual, e não sou intelectual, mas OK; que sou manipulador, mas OK.


E a ironia, faz parte dessa personagem?

Provavelmente. Nunca tento desiludir as pessoas sobre quaisquer noções que têm sobre mim. São livres de ter as suas próprias noções, que podem ser completamente verdadeiras ou falsas. Mas é uma coisa que nunca, jamais, tento controlar. Não tem interesse: sei quem sou, vivo comigo há 48 anos... para o melhor e para o pior.


Como é que essa personagem se encaixa nos filmes de Oliveira e no capitão de "Um Filme Falado"?

Não me parece que Manoel me veja particularmente assim. É mais inteligente... Não me parece que me veja como alguém frio, intelectual ou manipulador. A personagem que represento também não é assim.


Definiu o universo de Oliveira como onírico, algo que associa também ao teatro. Filmar com o realizador está próximo da sua experiência teatral?

Provavelmente. Manoel filma cenas muito longas, está interessado na existência. Normalmente, no cinema, uma cena dura três segundos ou pode durar três minutos, mas ele pode fazer um "shot" de oito minutos. A única coisa que me distrai quando vejo os seus filmes, são as legendas — tenho que as ler, o que me irrita, mesmo gostando tanto do texto . Mas fico tão absorvido pelo que se vai passando, tão apanhado no sonho... Ele faz tantas coisas que pertencem ao mundo onírico, que são tão reflexivas da natureza do tempo e do modo como vemos o tempo... Por isso, são filmes incrivelmente oníricos. Não se olha apenas para aquilo que se está a passar, reflectese também sobre a relação do que se vê com a nossa vida. É dos poucos realizadores para quem as coisas são como uma memória a longo prazo em oposição a uma sensação ou experiência rápida.


Nasceu e cresceu nos Estados Unidos, mas vive em França, no campo. Há esse "dreamscape" na sua relação com a Europa, uma espécie de fascínio por um outro tempo?

Acho que isso é justo. Claro que na América há pessoas sonhadoras e reflexivas e isso fez certamente parte da minha infância. Os dias passavam-se tão devagar, mesmo devagar. Mas penso que agora é menos assim, também na Europa. Isso ainda existe aqui. É um tempo além da informação inútil, dos dogmas políticos. A vida é mais do que o mundo moderno. Porque as pessoas existiam antes da maioria dessas coisas existirem e, provavelmente, vão continuar a existir depois delas desaparecerem.


Disse uma vez que preferia sempre ler o livro a ver o filme. O argumento do seu primeiro filme nasceu de um livro. O que prefere: o livro ou o seu filme?

O mais importante, acho, é o que prefere o escritor. E ele disse-me várias vezes que preferia o filme. Eu adoro o filme. Mas não é como a maioria dos filmes. É muito reflexivo e onírico. Isso está nas personagens, na forma como filmo, em tudo. É mais como um poema.



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