Clint Eastwood - Um coração nas trevas

O último dos cineastas clássicos americanos parece um artista de vanguarda: elegeu o seu próprio corpo como matéria-prima a modular. Em "Dívida de Sangue", Clint Eastwood mostra as suas cicatrizes, o seu envelhecimento. E confronta-se com os seus fantasmas no escuro. "Dirty" Harry e os outros

Os anos passam por ele e ele faz questão de mostrar isso e de o frisar. Pode-se dizer até que boa parte da sua obra recente tem tido essa preocupação como essencial. "Dívida de Sangue", nesse aspecto, vai mais longe do que qualquer filme de Clint Eastwood alguma vez foi. Logo ao princípio, vemos a personagem de Clint a ter um enfarte, esperando depois (em elipse) vários meses (anos?) até que se reúnam as condições para um transplante de coração. A seguir, quando arranca decisivamente a acção, temos direito ao Clint Eastwood mais macilento de que há memória, sempre febril e com uma enorme, assustadora e doentia cicatriz a cruzar-lhe o peito. Um "Dirty" Harry em permanente convalescença, envelhecido e cardíaco? Também. O ajuste de contas, por assim dizer, com as imagens de si que mais o celebrizaram é algo a que tem procedido desde há bastante tempo. Hoje, quando passam praticamente dez anos sobre a consagração e sobre os Óscares de "Imperdoável", é difícil de dizer com certeza que a imagem mais dominante de Eastwood seja ainda a que vem dos Dirty Harries ou dos "westerns" de Leone. Mas nunca deixou de ser, para o próprio Clint, um dado importante.Se o jogo e a variação em torno da sua "persona" cinematográfica, com alguma ironia e muita perversidade, acabam por se constituir como uma das mais fortes marcas temáticas do trabalho de Eastwood, dir-se-ia que ele procura outra coisa para além da mera dissolução dessa imagem. Qualquer coisa, por exemplo, que tenha a ver, ou que seja possível ver, através do que vai ficando depois dessa dissolução. Ou, por outra, Clint não estaria apenas interessado na demolição da sua imagem de antanho, mas em qualquer coisa que passasse através das fissuras que essa demolição vai abrindo. É difícil resistir à tentação de ver em Eastwood um realizador que, embora instalado dentro dos mais clássicos dos ambientes e fazendo uso das mais clássicas convenções, elegeu, como se fosse um artista de vanguarda, o seu próprio corpo como matéria-prima a modular infinitamente. Uma espécie de escultor de si próprio. E, se assim for, "Dívida de Sangue" irá mais longe do que nunca: nele, vemos Clint Eastwood a fazer desenhos no seu próprio corpo, a escavar uma cruz no peito e a exibi-la em itinerância, já que o filme não perde uma ocasião de a mostrar. Que Clint demonstra uma exacerbada consciência de si mesmo é inegável. A sequência inicial de "Dívida de Sangue" é, aliás, exemplar no modo como a exibe. É uma sequência que, às tantas, desencadeia uma cena de perseguição, onde a personagem de Clint se põe a correr atrás do suposto "serial killer" que é o seu "némesis" neste filme. Ora Clint, aos 70 e tal anos, já não corre como antigamente, e isso fica logo evidente. Acontece que, justamente, quando a pouca convicção da corrida começa a ameaçar a suspensão da descrença e o espectador se diz com os seus botões "Francamente, Clint, começas a exagerar, se esperas que a gente vai acreditar que com esse passo vais a algum lado"..., justamente nesse momento, dizíamos, a personagem fica estendida na estrada com um ataque cardíaco. Fantástica ironia, mas, mais do que isso, fantástica gestão das expectativas do espectador - o que soava a falso acaba por ser levado em linha de conta na criação de um efeito realista. Mais fascinante ainda, essa sequência inicial conclui-se assim como se processasse uma anulação do anterior filme de Eastwood, "Cowboys do Espaço", espécie de elogio da terceira idade onde se cantavam os feitos heróicos um grupo de astronautas envelhecidos. Será só uma questão de jogo, mais ou menos estéril, por brilhantes que sejam os processos empregues e os resultados obtidos? Estamos em crer que não. Repesquemos "Imperdoável", para recordar que, tal como em "Dívida de Sangue", a personagem de Clint passava o filme todo doente, com uma valente gripe a enferrujar as articulações já de si emperradas pela idade e pela sova que apanhou a dada altura do filme. Mais do que constituir a doença como tema, talvez o que interesse a Clint seja apenas figurar, mais ou menos abstractamente, a adversidade, qualquer coisa que se abata sobre a personagem tolhendo-lhe os movimentos mas sem anular a compulsão de seguir em frente, de se continuar a mover - e nesse sentido, de facto, que melhor figuração do que a suscitada pela doença, ou, já agora, pela velhice? As personagens de Clint continuam em frente, continuam a andar, impelidas por qualquer coisa que se sobrepõe sempre a esse tipo de barreiras ao movimento. E que podem ter outro tipo de manifestações, lembre-se como, por exemplo, em "Um Crime Real" (que é mesmo um dos seus grandes, grandes filmes) a sua personagem, embora sem qualquer limitação física evidente, surgia completamente entalada por mil e uma razões diferentes. Estamos perto do tema do sacrifício, e em última análise o cinema de Eastwood também tem andado lá muito perto. É a altura, portanto, de puxar pelo "flash back" e lembrar que as grandes âncoras do seu cinema, mais do que as referências de Sérgio Leone ou Don Siegel, são os gigantes clássicos da estirpe de Hawks ou John Ford (ou mesmo William Wellman, que, aliás, em "Lafayette Escadrille", de 1957, entregou a Clint um dos seus primeiros papéis de relevância), e que neles o tema do sacrifício individual, muitas vezes a troco de nada a não ser de uma limpeza de alma ou da pacificação de uma relação com o mundo, era algo de absolutamente central. Há muita coisa no cinema de Eastwood que parece vir daí, desse a "man's gotta do what a man's gotta do" onde a questão mais importante - o "por que é o que o homem tem que fazer o que tem que fazer" - é a questão mais elidida. Ficam de lado, expostas em surdina, quando não completamente escondidas, as razões existenciais, para se ver apenas o seu resultado e a sua superação, a acção.É por isso que, como no cinema de Hawks (sobretudo), há sempre uma zona de sombra extremamente fascinante na construção narrativa e no desenho das personagens. Porque, bem vistas as coisas, há uma questão fundamental - a motivação - que nunca é respondida. Em "Dívida de Sangue" a gente sabe por que é que a personagem de Clint desperdiça a convalescença da operação ao coração na busca desenfreada de um "serial killer": porque o coração que recebeu era o de uma mulher que foi umas das suas vítimas, e porque a personagem de Clint não resiste nem ao filho dessa mulher nem sobretudo à irmã dela. Mas nunca sabemos porque é que ele o quer fazer, e porque é que continua a fazê-lo, mesmo quando quer o miúdo, quer a mulher já o aceitaram (e no fundo já lhe perdoaram a usurpação do coração da mãe e irmã). Nessa espécie de compulsão secreta, tão misteriosa quanto o alívio que o fim vem permitir, joga-se o essencial do cinema de Clint Eastwood. Um último sacrifício e depois paz. Mas por quê, por quê?

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