Carélia: A pedra no sapato dos finlandeses

Como tornar uma "ferida de guerra" numa zona de cooperação entre dois ex-inimigos? Será difícil, mas é o projecto da Finlândia para a Carélia, zona que representava 10 por cento do território finlandês e foi perdida para a ex-URSS após o final da II Guerra Mundial, numa transferência que causou, na altura, cerca de 400 mil deslocados. Com a Rússia não há tabus nem questões territoriais pendentes, afirmaram ao PÚBLICO vários responsáveis finlandeses em Helsínquia. Mas há quem teime em não ver a Carélia como perdida - e sugira que a cooperação económica poderá ser um meio para reaver parte da região. De um modo mais radical, há também quem exija a devolução pura e simples do território. Para isso está a ser criado o Partido da Unificação da Finlândia, que espera concorrer às eleições parlamentares de 16 de Março próximo. Dividirá os votos com outro grupo da oposição, o Partido do Centro, que tem entre os seus deputados o presidente da "Karelia Society" (segundo dados da associação, terá mais de 60 mil sócios) e tem uma posição mais moderada, defendendo a devolução de algumas partes da Carélia "daqui a 20 ou 30 anos" e admitindo que para já "o assunto não está na agenda oficial". A base de argumentação do presidente da "Karelia Society", Markku Laukkanen, é simples. "O que aconteceu não foi justo - os países bálticos tiveram a sua independência, a Alemanha oriental já se juntou à ocidental, tudo resultado de um processo político e histórico europeu", diz. "Por isso acredito que daqui a 20 ou 30 anos estas fronteiras possam ser avaliadas outra vez. E a Rússia está cada vez mais perto da UE e da Nato", conclui.A actual Presidente da Finlândia, Tarja Halonen, fez a primeira visita oficial à Carélia em Junho de 2000, depois de se ter encontrado com o Presidente Putin em São Petersburgo. "Um visita histórica", descreve o responsável pela divisão da Rússia no Ministério dos Negócios Estrangeiros finlandês, Ari Hakkinen. A própria Presidente emocionou-se ao falar da questão ao PÚBLICO, numa entrevista dada a um grupo de jornalistas portugueses, embora sublinhe que nunca fez parte de "nenhuma organização que queira a devolução da Carélia". Para Tarja Halonen, é uma questão emocional, mas encerrada: "A região faz parte da Rússia e eles têm de tratar dela." A Finlândia perdeu território, mas nunca foi ocupada pela Rússia soviética, o que é um motivo de orgulho nacional.A Carélia "é uma região muito pobre", lamenta a Presidente finlandesa. Por isso, "temos tido [na Finlândia] uma discussão sobre como podemos esbater a fronteira", de forma a que a diferença económica não seja tão grande. Por outro lado, para Halonen seria importante que os finlandeses nascidos na Carélia, e que foram deslocados, "pudessem ver a sua terra natal, locais a que estão muito ligados emocionalmente, a sua aldeia, a sua igreja...". Na altura do encontro entre Halonen e Putin, os jornalistas finlandeses puderem colocar uma questão ao presidente russo. Escolheram uma possível devolução da Carélia. Putin respondeu bruscamente: "Continuar essa discussão é muito perigoso." A linha de 1300 quilómetros que divide a Finlândia e a Rússia "é uma fronteira muito traumática", afirma Markku Laukkanen. "Antes de 1989 era muito militarizada e difícil de lá ir. Agora ainda há problemas, mas na alfândega, que obrigam a várias horas de espera". Zona de fortes tradições culturais (ver caixa) e com um dialecto próprio, a Carélia deixou nos seus antigos habitantes finlandeses um espírito de união como comunidade, ainda que os deslocados, na maioria agricultores, tenham sido espalhados por toda a Finlândia. Markku Laukkanen, por exemplo, já não nasceu na Carélia. Tenta explicar a sua posição: "Os meus país estão há 60 anos em casas novas. Mas a nossa família estava há séculos na Carélia." O demógrafo finlandês Markku Ryynänen, descendente de carelianos, pegou nos 407 mil deslocados, nas duas gerações nascidas entretanto, e estimou que existirão cerca de 600 mil finlandeses que serão pelo menos meio carelianos, ou seja, 11,5 por cento da população do país.

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