beth gibbons

Começa bem o Outono: em "Out of Season", Beth Gibbons prova que há mais para além dos Portishead, num disco graciosamente lapidado por recortes acústicos, orquestrais e jazzísticos. Oiçam-no, se faz favor. Depois não digam que não foram avisados.

Um dia, vai ser preciso meter isto na cabeça de uma vez por todas: uma das vozes que personificou uma certa "malaise" urbana nos anos de tensão pré-milénio é, afinal, uma rapariga do campo; um dos rostos da chamada cena "trip hop" de Bristol não era uma local, mas alguém que viera de um enclave verdejante de Inglaterra encostado aos "moors" para escapar a um destino previsível de "farmer's wife" (mulher de agricultor). Uma e outra são Beth Gibbons, a voz e o rosto dos Portishead, que em dois álbuns - "Dummy" (1994) e "Portishead" (1997) - se estabeleceram como um dos fenómenos mais insuspeitos da pop da última década, destilando um negrume depressivo preparado num laboratório de sons cuja fórmula química combinava a desaceleração dos "beats" com velhas bandas sonoras.Se o terceiro "opus" do grupo é aguardado com expectativa - desde a promoção do registo ao vivo, "PNYC", em 1998, que os Portishead não dão sinal de vida -, o que se recomenda é paciência (fala-se em 2003...). O que nem é tão difícil quanto isso: para apaziguar os espíritos e sossegar inquietações, surge agora "Out of Season", primeiro álbum a solo de Beth Gibbons (descansem: ela não abandonou os Portishead).Quer isto dizer que as explorações solitárias de Gibbons andam próximas do seu trabalho em equipa? Para arrumar de vez o ponto de interrogação que paira sobre a cabeça de toda a gente: se, às primeiras tentativas, o que se descobre é uma outra orientação musical, predominantemente acústica, as audições acrescidas vão tratando de revelar pontos de contacto com os Portishead, em termos de ambiências e texturas. Saltem directamente para os temas "Tom the model" e "Rustin' man" e descubram as semelhanças. Para matar saudades. Já está?... Então, agora podemos passar adiante.longe de tudo. Beth Gibbons é uma figura desconcertante. Uma Emily Brontë dos tempos modernos? Coincidências biográficas: "Cresci longe de tudo", revelou numa das suas raras entrevistas. Numa quinta isolada, a milhas de distância da cidade mais próxima, Exeter, onde se ia uma vez por mês, imagina-se Beth a encarar de frente o vento das terras altas - e a sorrir. Eram quatro irmãs, mais uma que as Brontë, e havia sempre trabalho para fazer numa propriedade onde o pai estava ausente. Aos 17 anos, quando as amigas partiram para a cidade, resolveu ficar. Aos 20, saiu atrás de um rapaz, mas voltou dois meses depois. Aos 22, rezam as crónicas, chegou a Bristol para tentar a sorte como cantora, percorrendo o circuito dos pubs durante dez longos anos. Até que conheceu Geoff Barrow numa agência de emprego e o resto da história é conhecida. Diz o seu companheiro dos Portishead: "Percebi que ela tinha uma grande voz, mas não me pareceu que iríamos conseguir fazer alguma coisa juntos. À altura, a voz dela estava muito longe daquilo que pretendíamos." O tempo reserva ironias assim: Gibbons surge agora num formato que à partida lhe seria mais natural, arriscando comparações com o seu papel nos Portishead. Não é a sua inscrição na linhagem da folk que deveria surpreender, mas as suas funções de diva improvável em duetos com malhas de "samples". "Posso fazer muito mais do que aquilo que ouvem nos Portishead. Ou melhor: mais do que os Portishead precisam". A confirmação aí está.Na verdade, não se trata de um álbum a solo, mas de uma cumplicidade: Beth Gibbons assina "Out of Season" a meias com Paul Webb, ex-baixista dos Talk Talk, aqui sob o alter-ego de Rustin' Man (adoptado da última canção do álbum, para o qual escreveu as letras). Velhos amigos, ainda antes de Beth integrar os Portishead, já tinham colaborado juntos num outro projecto de Webb, O'rang, com Gibbons a emprestar a voz no álbum "Herd of Instinct", de 1995. A partir daí, a lista de contribuições é uma ramificação das respectivas famílias musicais: dos Portishead, vieram o guitarrista Adrian Utley, o baterista Clive Deamer e o pianista John Baggot (os dois últimos são colaboradores ocasionais); dos Talk Talk, vieram o baterista Lee Harris e o percussionista Simon Edwards, além do "mixer" Phill Brown, que trabalhara em "Spirit of Eden". Álbum caseiro, gravado entre as paisagens rurais de Devon e Essex, faz da matéria da paisagem ressonância para a desordem interior, como se buscasse nela alento para a recomposição das coisas. Canções de exterior ou canções de interior? Canções de quem acredita que os grandes espaços podem ser interiores. É certo que até começa com a promessa de uma fulguração panteísta - "God knows how I adore life / When the wind turns on the shores lies another day / I cannot ask for more", ouve-se no tema de abertura, "Mysteries" -, mas o propósito não é uma qualquer exultação bucólica, pelo menos não tanto quanto a submissão existencial à lei da natureza, aos seus ciclos, à sua teimosia em mudar. "Movements like a rainbow-coloured sky / How they come and go?", pergunta Beth em "Spyder", esse "come and go" que não é senão a instabilidade dos amantes: "How long did I know you / For I don't know why you had to go", canta em "Drake". Mesma interrogação, só os destinatários são diferentes.Beth Gibbons não é deste mundo. Um título como "Out of Season" soa como protótipo do anti-"hype" numa altura em que Christina Aguilera promete "Stripped". Desadequadamente apropriado: em perfeita desadequação com quaisquer tendências - o seu som não é deste tempo -, mas em plena sintonia com a estação que o traz. Começa bem o Outono, aconchegado pelo gracioso disco todas-as-estações que é "Out of Season".Gibbons nem sequer perde tempo com elaborações "smart" à volta do título. "Não queria fazer uma imitação daquilo que já tinha explorado. A única coisa que procurámos foi obter qualquer coisa de relativamente honesto. Este álbum não pretende acompanhar a moda ou qualquer coisa de contemporâneo. Pareceu-nos apenas justo. O título convinha-nos porque Paul e eu já não somos muito jovens." Convenhamos que não é o tipo de discurso que se lê todos os dias no "press release" de um músico. Tentem lembrar-se de alguma entrevista com a cantora. Justamente: Gibbons pode ser a Grande Voz dos Portishead, mas quanto a entrevistas foi sempre a Grande Ausente. "Não levo nada a sério, nem a imprensa nem o grupo. Analiso tudo o que nos acontece com grande frieza: sei que dentro de um ano ou dois, ninguém quererá saber dos Portishead. Os jornalistas terão partido em busca do novo grupo do momento. E nesse dia, poderei olhar-me no espelho e dizer a mim mesma que fui honesta", afirmava em 1995, numa entrevista que tem servido de fonte principal de citações e vagas prospecções biográficas. Pose? Nem por isso: "Para mim, a recusa em falar nunca foi um golpe, um cálculo, mas uma forma de me proteger. Conheço vários escritores que não falam e isso não choca ninguém. Pessoalmente, nunca pensei que 'Dummy' fosse um disco particularmente excitante, ao contrário do que tantas pessoas dizem. Ainda me pergunto porque é que as pessoas querem falar comigo." Há os que, eventualmente, conseguem e se deparam com a desarmante simplicidade de alguém que usa muito a palavra "bollocks" (tradução eufemística: disparate). evocações. Mas, "nevermind the bollocks". "Desde que a conheço, nunca me lembro de ela dizer que tenha saído para comprar um disco e que gostou. Acho mesmo que ela nem sequer ouve música", afirmou em tempos Geoff Barrow. Não admira que "Out of Season" soe como um ovni, nem revisionista nem revivalista, mas com uma marca de água por onde perpassa a tradição folk dos idos de sessenta: Nick Drake, Joni Mitchell, Sandy Denny, Nico são evocações legítimas, mas o fino recorte das canções de "Out of Season" é lapidado no cruzamento com outras nuances sonoras e na doce leveza dos arranjos. Os primeiros sons que se ouvem são ruídos claustrofóbicos, lynchianos - é então que "Mysteries" arranca num coro gospel embalado pela guitarra acústica, serenata de anjos a invocar o misticismo do "Halleluyah" de Cohen. Mas é um paraíso perdido: "Tom the model" devolve Beth à realidade, num "blues" que resgata os glissandos de uma "slide guitar" dos fifties e os arrepios de um órgão Hammond, a que se junta uma orquestra de metais no refrão. Coros bruxuleantes ao fundo, Gibbons transforma-se em Mrs. Bryan Ferry, esforçando-se por disfarçar mágoas num "woman's lib" duvidoso. "Show" é um "take" irónico: "let the show begin", canta ela, mas é um "show" sem assistência, um piano melancólico e repetitivo (presume-se que é aqui que se deve reconhecer a referência do "press release" a "Exit Music" dos Radiohead) fazendo ricochete contra a parede. Com o lamento de um violino ocasional, a voz assume inflexões jazzísticas, mais Nina Simone (uma das preferências assumidas por Gibbons) que nunca. "Romance", no entanto, exorciza o fantasma de Billie Holiday. Swingante e orquestral, traz Bacharach à memória. Notam por ali um pressentimento de alegria? "That ain't me", repete Gibbons. Suave como uma brisa calorosa, "Sand river" sugere uma Aimée Mann em desaceleração: o Outono chegou e os Beach Boys dão uma ajuda nos coros, obviamente delicados (destroçados?). Belíssimo, crepuscular, assombrado: se a Cathy de "O Monte dos Vendavais" tivesse uma canção seria "Spyder". As entoações das guitarras são ligeiramente góticas, a voz é soprada pelo vento: tudo aconteceu há muito tempo, "time is but a memory". Épico de solidão, há-de terminar com uma caixinha-de-música danificada. "Resolve" é puramente acústico e "Drake" não se chama assim por acaso: é uma evocação da elegância melódica de Nick Drake. "Funny time of year" é uma confissão algo masoquista, em progressão doentia. Para ouvir com as luzes bem acesas, não vá o diabo tecê-las: "The winds are blowing / and telling me all I hear / Oh it's a funny time of year / There'll be no blossom on the trees". A voz de Beth Gibbons vai tomando modulações diferentes, temerosa a princípio, ameaçadora no fim, como se fosse dando conta de uma claustrofobia crescente. O mesmo com os instrumentos, que se vão introduzindo um a um - guitarra acústica, órgão, "slide guitar", piano - para terminar numa sinfonia fantasmagórica. Instalação sonora para imagens de uma aurora em "fast forward", "Rustin' man" é um filme impressionista, madrigal de manipulações sonoras e vocais, quando os olhos se tentam habituar aos primeiros raios de sol. Uma palavra ecoa no final, como um disco riscado: "again". Ficamos à espera.

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