O mundo de Damião de Góis em congresso na Torre do Tombo

A Europa da expansão marítima e dos conflitos político-religiosos do século XVI esteve ontem no centro de um colóquio de homenagem ao cronista, historiador, diplomata e compositor Damião de Góis, realizado na Torre do Tombo (TT), em Lisboa. Especialistas como Vítor Serrão, Rui Vieira Nery, António Borges Coelho, José Vicente Serrão ou A. H. de Oliveira Marques, reuniram-se para dar a conhecer as múltiplas facetas daquele que é descrito como o mais cosmopolita dos humanistas portugueses, num congresso organizado pelo Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (IANTT) e pela Associação de Professores de História. Abrangendo áreas tão distintas como a economia ou a produção artística, as comunicações apresentadas traçaram parte do percurso do homem que, acusado de luteranismo, foi alvo do maior processo da Inquisição em Portugal, tendo sido condenado como "herege, pertinaz e negativo" e encarcerado no Mosteiro da Batalha, em 1574. Oliveira Marques debruçou-se sobre a actuação de Damião de Góis enquanto "Agente Económico da Coroa Portuguesa" (desempenhou importantes funções na feitoria de Antuérpia), José Pedro Saraiva dedicou-se ao processo a que foi sujeito pelo Santo Ofício ("Católico sou e não luterano: o processo de Damião de Góis na Inquisição"), enquanto Fátima Ramos se voltou para o seu trabalho enquanto "Guarda-Mor da Torre do Tombo".Do gótico tardio à estagnação da Contra-ReformaNos três primeiros quartéis do século XVI - correspondentes ao período em que viveu o autor da "Crónica do Felicíssimo Rei Dom Manuel" (1502-1574) - Portugal atravessou diferentes períodos de criação artística, do Gótico final presente no "estilo manuelino" à viragem anti-clássica do Maneirismo, passando pela presença incontornável do Renascimento. "Damião de Góis assistiu a uma série de mudanças e foi responsável pela difusão de uma nova visão da arte. Quando regressa da Europa [passou por cidades como Antuérpia, Friburgo, Lovaina, Pádua ou Veneza], tem uma visão claramente renascentista, por via flamenga, que rejeita o carácter retrógrado do modo Gótico, que então se vivia", explicou ao PÚBLICO Vítor Serrão, responsável pela comunicação "A Cultura Artística no Tempo de Damião de Góis". Recorrendo a breves descrições de obras de pintores como Gregório Lopes, Vasco Fernandes, Cristóvão de Figueiredo ou Leão de Contreiras, Vítor Serrão traçou um panorama das progressivas transformações a que a produção nacional foi sujeita, em virtude das correntes artísticas propagadas por toda a Europa, que vivia uma "cristandade dividida pela Contra-Reforma" e enfrentava a ameaça turca. "A partir de 1530 acentua-se uma viragem [com o reinado de D. João III, 1522-1557, e a regência de D. Catarina]. Da tendência medievalizante passa-se para uma cultura mais internacionalizada", com influências flamengas e italianas que correspondem a um período de florescimento artístico, que viria a ser interrompido pela Contra-Reforma. "Essa época de estagnação só acabaria com o fim do domínio Filipino, contrariada pelo Barroco", explica Serrão.Damião de Góis acompanha toda a tendência inovadora da sua época, nomeadamente no que diz respeito a uma nova preocupação com uma "arquitectura idealizada, 'inconstruível'" - a sua magnífica "Descrição da Cidade de Lisboa" é disso exemplo - "rejeitando o figurino do manuelino e adaptando, incondicionalmente, o do Renascimento". O musicólogo Rui Vieira Nery abordou a ligação de Damião de Góis a outro dos sectores da criação - a música. Como um verdadeiro humanista, interessado nas mais diversas áreas do saber, o cronista "não oficial do reino" dedicou-se à composição, sendo referenciado num importante tratado musical (o de Glareano) e em colectâneas significativas da época. Os seu motetes (género musical sacro) revelam, segundo Nery, que se encontrava "plenamente integrado na estética renascentista". No âmbito das comemorações, a TT inaugurou ainda ontem uma exposição com o espólio bibliográfico e documental de Góis, de que é fiel depositária. Para os especialistas presentes, a obra do humanista está ainda mal estudada, merecendo um novo olhar. Tudo porque o reconhecimento internacional que atingiu no seu tempo este "homem excepcional", tolerante e progressista, que chegou a presentear cardeais italianos com obras de Bosch e foi hóspede de Erasmo de Roterdão, não é comum na historiografia nacional.

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