Hannibal, o Canibal, está de regresso às salas

Desta feita, não foi preciso esperar dez anos para se matar saudades de Hannibal Lecter, o antropófago "gourmet" que começa a ser um ícone popular dos mauzões do cinema americano. Pouco mais de um ano depois do barroco e sangrento "Hannibal", Anthony Hopkins regressa na pele de Hannibal, o Canibal, em "Red Dragon", de Bret Ratner, uma história precursora de "O Silêncio dos Inocentes" que promete explorar a "origem do Mal". Mas é claro que "Red Dragon" não se aventura nunca pelos caminhos patológicos que levaram o psiquiatra Hannibal Lecter a deleitar-se com carne humana. O produtor, Dino De Laurentis, que festeja alegremente 83 anos, secundado pela sua jovem mulher, Martha De Laurentis, já não se mete em aventuras artísticas, limitando-se a explorar o filão de ouro do vilão mais popular do cinema."Red Dragon" restringe assim Hannibal Lecter ao papel do canibal sofisticado que todos conhecemos, erudito e prazenteiramente malfazejo. E é por isso que se "engole" um Anthony Hopkins envelhecido, no papel de um Hannibal Lecter vinte anos mais novo. O filme transporta-nos para Baltimore em 1981, em pleno concerto da orquestra sinfónica local. O primeiro-flautista tem a desgraça de dar algumas fífias, o que não agrada ao Dr. Lecter. As cenas seguintes levam a crer que o infeliz flautista acabou em "amuse-bouche" delicado, servido pelo eminente psiquiatra aos administradores da orquestra sinfónica, num jantar encantador. Uma nova forma de crítica, em suma. Demasiado radical, talvez, mesmo se acompanhada por excelentes vinhos.O assassino canibal será desmascarado e preso por um agente do FBI, Will Graham (Edward Norton), que escapa por um triz a um triste fim de guisado "à la mode de Hannibal". Um desenlace que lhe deixa enormes cicatrizes, e o leva a demitir-se do FBI para se consagrar à família. Mas, anos depois, os assassinatos de duas famílias por um psicopata canibal levam o seu antigo patrão, Jack Crawford (Harvey Keitel, tão entalado no fato cinzento que usa no filme como num papel de polícia pardacento que não é para ele), a convencer Graham a dar-lhe uma ajuda. E este acabará, é claro, por ir à prisão de Baltimore pedir a ajuda de Hannibal Lecter. Sensação de "déjà vu"? E de que maneira!"Red Dragon" segue fielmente a primeira novela da trilogia de Thomas Harris que deu azo ao personagem de Lecter, e que já foi adaptada ao cinema em 1986, no filme "Manhunter", de Michael Man, com Brian Cox no papel de Hannibal, o Canibal. E como a primeira novela de Harris foi uma espécie de rascunho para o "O Silêncio dos Inocentes", a adaptação que agora é assinada por Bret Ratner estabelece paralelos permanentes com o extraordinário filme realizado em 1991 por Jonathan Demme. Mas "Red Dragon" nunca atinge a intensidade emocional de "O Silêncio dos Inocentes", nem a "performance" de Edward Norton consegue rivalizar com a de Jodie Foster no papel da agente do FBI Candice Starling (Hopkins e Foster foram então, recorde-se, recompensados com os Óscares de melhores actores). "Red Dragon" não repete a proeza. Não há frescura no trabalho de Ratner, não se vislumbra nenhuma descoberta do realizador, e não se vê nunca Ratner a tentar o mais pequeno risco. Realizador das duas comédias "Rush Hour" com Jackie Chan, Ratner é um técnico eficiente, não um artista. E se "Red Dragon" consegue, apesar de tudo, cativar o espectador, é porque Laurentis foi buscar Dante Spinotti como director de fotografia, para dar densidade à frieza comercial do realizador (antigo repórter italiano, Spinotti foi premiado por "L.A. Confidential", e também filmou "Manhunter").Por vezes, chega-se a sentir saudades da realização barroca de Ridley Scott em "Hannibal", mesmo se "Red Dragon" é um filme de "suspense" clássico, sem cenas de violência traumáticas. Resta acrescentar que Anthony Hopkins, esse, continua a seduzir. O actor britânico desempenha agora Hannibal Lecter sem piscar os olhos, e põe um brilho insano nas pupilas negras e desfocadas, por debaixo das pálpebras meio fechadas. Quase não se mexe, dando assim uma intensidade dramática à minúcia de maneirismos nos seus raros gestos. O resto do elenco continua a ser uma espécie de "dream team" para uma peça de Shakespeare (mesmo se Harvey Keitel parece passar ali só por acaso). Ralph Fiennes transcende as limitações do seu personagem, Dolarhyde - ou "Tooth fairy", o assassino psicopata antropófago fascinado por Hannibal Lecter e pelo poeta William Blake. Contudo, a beleza clássica de Fiennes torna pouco plausível o suposto trauma psicológico causado pelo beiço rachado que lhe desfigura o rosto. No papel de uma cega atraída por Dolarhyde, e capaz de fazer ressurgir nele laivos de humanidade, Emily Watson (descoberta em "Ondas de Paixão", de Lars von Trier) comove e seduz.

Sugerir correcção