Torne-se perito

A década que reinventou a televisão portuguesa

Dez anos de canais privados abriram caminho à inovação e à democratização da informação. Mas a dessacralização da TV não foi obtida sem mácula. Cometeram-se excessos e, as mais das vezes, sobretudo em horário nobre, sacrificou-se a qualidade em nome das audiências. A televisão pública - que ficou sem a taxa - perdeu a batalha com a concorrência e entrou numa decadência que sucessivos governos foram incapazes de travar. "O país mudou nos anos 90 em grande parte devido à televisão", sustenta Joaquim Vieira, presidente do Observatório da Imprensa e director de programas da RTP em 1996. Essa mudança na apreensão dos acontecimentos, segundo este jornalista, "pode ter reflexos na apreciação que os portugueses fazem dos políticos". Da quase infindável lista de mutações que Emídio Rangel, fundador da SIC, enumera, há uma que salta à vista: "Mudou o conceito de mensagem única, própria dos regimes ditatoriais."O ex-director adjunto de programas da SIC, António Borga distingue nesta década dois momentos: um de 1994 até 2000, e outro desde essa data. Naquele primeiro período "a televisão em Portugal passou por uma verdadeira revolução e um crescimento muito acentuado no aspecto técnico, criativo e empresarial", afirma aquele que foi o braço direito de Rangel na SIC e agora trabalha na RTP. Estabeleceu-se com o público "uma relação com a televisão que não existia". Nos últimos dois ou três anos, a "pequena constipação do mercado publicitário, que, em alguns casos, levou ao pânico de empresários das televisões privadas, aliada à ausência de uma política integrada de apoio do Governo ao audiovisual, conduziu à decadência que se vive hoje no sector", observa o mesmo responsável. José Eduardo Moniz, director-geral da TVI, também realça "uma atitude nova de relacionamento com o espectador" como um dos marcos na história da televisão privada em Portugal. O outro, adianta, "é uma maneira mais ousada, livre e independente de fazer informação". Mas, na opinião do homem que estava à frente da RTP quando a SIC foi para o ar, as privadas "vieram consolidar um clima que já se sentia, três anos antes, na maneira de fazer informação e programação". A maioridade do jornalismo televisivoA inovação, o pluralismo, a agressividade e a maior proximidade aos cidadãos encetados na informação televisiva são, sem dúvida, as virtudes de dez anos de televisão privada."Esta televisão de proximidade que temos deve-se muito à SIC", sustenta Felisbela Lopes, uma universitária que estudou os telejornais de serviço público antes do aparecimento da iniciativa privada. Joaquim Vieira também destaca como importante o facto de as privadas terem oferecido uma alternativa ao que era mais oficial. "A informação televisiva passou a ser mais agressiva e questionava o poder, o que teve consequências. Agora, os políticos organizam a sua agenda em função da televisão." A ausência de programas de debate regulares em directo, o aflorar de assuntos tabu, a oferta de novos géneros - como o docudrama - e o acesso à televisão por parte de uma corrente de opinião e de cidadãos anónimos levam António Borga a afirmar que "foi só com a televisão privada que o jornalismo televisivo atingiu a maioridade". "Antes andava a reboque da imprensa." Emídio Rangel destaca de igual modo o choque que a SIC causouf+b f-bna abordagem noticiosa face a uma estação que favorecia o critério político-ideológico, o que trouxe "altos benefícios para a democracia". "A RTP era uma televisão governamentalizada e manteve-se assim durante alguns anos." As novas linguagens e formas de expressão visual são aspectos que Felisbela Lopes sublinha. "Se os canais não fossem identificados, distinguiríamos claramente uma reportagem da SIC", refere a investigadora da Universidade do Minho, lembrando também que aquele canal "inovou pelo cenário, ao ser a primeira a mostrar os bastidores". Se todos aplaudem a lufada de ar fresco na informação televisiva, não falta porém quem aponte atropelos cometidos e a tendência para a tabloidização. Joaquim Vieira não tem dúvidas de que "há uma inversão do que são as notícias importantes". "Primeiro vêm os 'fait-divers', o futebol e só depois o que interessa à sociedade." Aponta ainda o prolongamento indefinido dos telejornais e o abuso dos directos, quando muitas vezes não existe informação no local, sinal do que diz ser "um novo-riquismo da informação". Felisbela Lopes aponta como preocupante a tendência para o sensacionalismo, a diluição de fronteiras entre a realidade e a ficção - dá o exemplo do programa da SIC Cadeira do Poder -, e, por outro lado, o aproveitamento desmesurado das emoções. "Por exemplo, num caso de uma violação, prefere-se ouvir a vítima do que um médico ou um psicólogo." José Alberto Carvalho, jornalista que há dez anos deixou a RTP para dar a cara pela SIC, lembra ainda que o canal privado, a dada altura, tornou-se quase sinónimo de polícia. "Quando as pessoas se sentiam enganadas, eram mal atendidas num serviço público ou estavam descontentes numa empresa, diziam: 'Vou chamar a SIC', o que é uma perversão das funções de cada entidade, mas também revela o despertar da consciência cívica." Produção nacional ultrapassa brasileiraPara lá da informação, as televisões privadas abriram horizontes na programação, desfizeram tabus, não sem cometerem excessos. A última década destronou o império da telenovela brasileira como o principal garante de audiência e revelou a ascensão da ficção portuguesa (ou pelo menos feita com portugueses). A obreira desta mudança foi a TVI, que inaugurou ainda em Portugal o formato considerado mais revolucionário dos últimos anos - o Big Brother. Mas foi a SIC, recorde-se, que em meados da década, estreava os antecessores daquele "reality show" com programas como Perdoa-me ou All You Need Is Love, na medida em que o cidadão comum expunha a sua vida privada e se tornava num herói televisivo, ainda que por instantes. Foi ainda a SIC que criou programas como o de João Baião que, a certa altura, se tornou num símbolo do que era considerado uma certa programação "pimba" do canal. As privadas trouxeram "novas formas de entretenimento que até ofuscaram um pouco o salto na informação, mas que foram importantes, porque foi dado um impulso à ficção e produção nacional", diz António Borga. Evoca as séries de ficção adaptadas, como Médico de Família, e as originais, como Capitão Roby. Das novas linhas de entretenimento que surgiram com as privadas e de uma programação que "quebrou espartilhos e teias de aranha", Emídio Rangel recorda o Chuva de Estrelas, "um programa aparentemente banal, mas que fez mexer o país", o Ponto de Encontro, "amaldiçoado no início e que depois serviu para teses de licenciatura", e o Casos de Polícia, que "também começou amaldiçoado e um ano depois era uma referência".Sem deixar de mencionar o Big Brother pelo impacto causado, José Eduardo Moniz realça o crescimento da ficção portuguesa, "mérito da TVI", mas também aponta os telefilmes, "mérito da SIC". Joaquim Vieira recorda que "a concorrência fez com que a qualidade técnica dos programas aumentasse, surgisse outro grau de exigência e outra linguagem mais moderna". Mas um dos aspectos negativos da iniciativa privada, realça, é que "os programas dominantes em horário nobre se caracterizam por valores bastante abastardados face aos restantes países europeus; aí as pessoas têm mais por onde escolher". A estratégia de confronto da SIC deitou por terra a hegemonia da RTP. A estação pública perdeu, na última década, uma das suas fontes de financiamento - a taxa - e viu outra - a publicidade - diminuída na RTP1 e cortada na RTP2. Esta erosão dos rendimentos, aliada à instabilidade dos apoios estatais e à incapacidade de modernização da empresa, gerou uma situação financeira muito degradada e a precisar de urgente intervenção. "De um modo geral o serviço público não esteve à altura das exigências. Há uma falência irrecuperável da televisão pública", lamenta Rui Cádima, presidente do Obercom, Observatório da Comunicação. Os sucessivos governos - e as muitas administrações - não conseguiram travar a lenta queda da RTP e foram ziguezagueando em torno de um caminho para o serviço público. O debate continua aceso, uma década depois da oferta televisiva se ter diversificado - não só em número de canais como de conteúdos -, tornando o telecomando um objecto indispensável.

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