Jogo É Jogo

Reconhece-se um jogador pela eficácia do seu "bluff". O argentino Fabián Bielinsky, por exemplo. Assistente de realização durante cerca de 20 anos, concorreu a um prémio de guionismo com o seu primeiro argumento e venceu. O prémio foi o financiamento total do filme.

Assim nasceu "Nove Rainhas", jogo bem arquitectado num "bluff" eficaz, que nos chega agora, depois do entusiástico acolhimento que tem recebido um pouco por todo o lado (incluindo o último Fantasporto, que lhe deu o prémio de melhor argumento da secção Semana dos Realizadores).

Não o sabemos, mas o jogo começa logo nas primeiras cenas, com o encontro de dois vigaristas de bairro, Juan (Gastón Pauls) e Marcos (Ricardo Darín), depois de o primeiro falhar um golpe numa loja de conveniência. Os dois aliam-se porque Marcos perdeu o seu último companheiro de ofício e porque Juan, aparentemente, tem muito que aprender e nada a perder. Formam uma espécie de dupla de mestre e aprendiz: Marcos é um verdadeiro "showman", experiente e sem escrúpulos, que propõe ensinar ao jovem Juan, "com cara de boa pessoa", alguns truques no jogo da manipulação e do logro.

De resto, é o que o mundo inteiro faz: enganar os outros. A cidade é Buenos Aires e Bielinsky mostra-a como terreno pródigo de vigaristas actuando quotidianamente sob a desatenção das autoridades e o desaviso dos cidadãos. Marcos e Juan são apenas dois elos de uma cadeia mais vasta, como se prova na sequência em que, num golpe de visão circular, Marcos resume todos os tipos de vigaristas que se movem na cidade.

Se David Mamet e os seus jogos de aparências surgem como uma referência inevitável, "Nove Rainhas" apropria-se do dispositivo mas de uma forma menos cerebral e mais humana, diluindo-o numa paisagem em que todos são predadores. A dupla do filme de Bielinsky não tem a eloquência sofisticada do "Mametspeak" (denominação dada aos idiossincráticos e inteligentes diálogos de Mamet), não pertence a qualquer submundo nem se fecha numa fumarenta sala dos fundos a jogar por dinheiro; o cenário de "Nove Rainhas" são as ruas, o mundo pequeno-burlão onde o conto do vigário assume requintes de prestidigitação.

Até que chega a grande oportunidade, um golpe de envergadura: vender uma série de selos preciosos (ou as suas cópias), conhecida como Nove Rainhas, a um homem de negócios e incorrigível filatelista. Mas nove rainhas é demasiado para dois vigaristas de bairro: alguém há-de ficar a perder. Jogo é jogo, afinal. E não há maneira de ficar de fora: num derradeiro golpe, Bielinsky mostra que o mais enganado de todos é o espectador - e que até se diverte com isso. O cinema é um jogo. Confiem nele, mas contem as cartas.

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