"Há o perigo de Portugal se transformar num paraíso para os criminosos"

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Maria José Morgado passou 18 meses à frente da Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira António Cotrim/Lusa

Maria José Morgado diz que a Polícia Judiciária (PJ) a tornou "sentimental" e que se demitiu quando a atmosfera se tornou "depressiva" e deixou de poder, como queria, combater o crime organizado.

Maria José Morgado, de 51 anos, confessa que o sentimentalismo que guardou dos tempos da PJ se ficam sobretudo a dever ao trabalho de terreno: "Se quisermos chamar a isso o risco, as insónias, as angústias, as alegrias, a ansiedade, a cara preocupada de um investigador na véspera de qualquer coisa, a cara cansada do investigador no dia seguinte, porque não se deitou ou se deitou às cinco da manhã, são momentos de solidariedade irrepetíveis. É uma boa recordação".

A ex-directora-adjunta da PJ, que passou 18 meses à frente da Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira (DCICCEF), quer diminuir o crime dos poderosos para "limites toleráveis". Caso contrário, a democracia em Portugal corre perigo. "A justiça que temos é forte com os pequenos e desigual em relação à criminalidade dos poderosos (o chamado 'crime of the powerful ones'). Ajudem-me a mudar isto", terá declarado Maria José Morgado quando chegou à PJ. "Temos uma justiça laxista, com dois pesos e duas medidas", sentenciou.

Maria José Morgado acusa ainda o sistema português em que as autoridades de fiscalização vivem de costas voltadas para as autoridades de investigação. Na sua opinião, isto não pode continuar a acontecer, com o risco de Portugal passar a ser um paraíso para os criminosos: "Não podemos ter uma polícia cega, surda, muda e desarmada, porque quem ganha são os criminosos e quem perde é a democracia. Há o perigo de Portugal se transformar num paraíso para os criminosos. O crime organizado tem muito dinheiro, tem poder, infiltra-se nas instituições".

Em relação à sua demissão da PJ, Maria José Morgado aplica uma metáfora artística: "As nuvens a respeito da minha demissão são de tal forma que me trazem à memória um quadro de Van Gogh que se chama 'Corvos voando sobre seara no Verão'. É um quadro espantoso, chocante pelas suas dimensões, em que os corvos são negros, negros, negros, a seara é flamejante, e a atmosfera depressiva é de tal forma que se nos cola à pele de forma irremediável".

De forma mais clara, porém, Maria José Morgado fala em desconfiança e diz abertamente que "é público" não ser ela a "pessoa que a ministra da Justiça queria para aquele lugar". Declarando ter sido "eficaz" nas suas funções, e falando mesmo numa "direcção central a fervilhar" e que se "prestigiou pelo trabalho dos investigadores", Maria José Morgado diz não entender o que é que mudou para que, às tantas, a sua equipa fosse acusada de "excesso de protagonismo".

No que toca ao escândalo das escutas ilegais praticadas pela PJ, que o semanário "O Independente" trouxe a público, Maria José Morgado afirma que "essa acusação é irresponsável, alarmista, porventura não inocente, e não tem qualquer sentido. Todos os sistemas de escutas na PJ estão sujeitos ao controlo judicial e do Ministério Público. O nosso sistema é o mais perfeito da Europa".

A ex-mulher-forte da DCICCEF aponta também o dedo a práticas criminosas muito mais graves que o tráfico de droga e que não fazem detidos: "O tráfico de droga é uma brincadeira ao pé do contrabando organizado do álcool e do tabaco, das fraudes internacionais, de combustíveis, contra os impostos especiais de consumo [...] Portugal, neste momento, é uma placa giratória no contrabando de cigarros. E não há ninguém a cumprir pena por causa disso! E, no entanto, até há portugueses presos na Suécia por contrabando de álcool de empresas transportadoras provenientes de Portugal".

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