0 desconsolo irreparável do mundo

As crónicas que Maria Judite de Carvalho escreveu, entre 1971 e 1974, para o suplemento Mulher do "Diário de Lisboa" foram editadas em livro no ano em que completaria 80 anos.

"Diários", publicados sob o pseudónimo de Emília Bravo, são crónicas que Maria Judite de Carvalho escreveu, entre 1971 e 1974, para o suplemento Mulher do "Diário de Lisboa". São pequenos apontamentos. Escreve-se a dada altura algo que poderia quase servir de emblema a estas "crónicas femininas": "Fui escrevendo sem lápis nem esferográfica, em não-papel, a minha crónica de coisa nenhuma." Não é naturalmente assim, mas há na autora esse jeito de pairar mansamente sobre o mundo à volta, esvoaçando-o sem precipitar sentimentos aflitos, limitando-se a sublinhar com elegância o que nele pode servir para uma "crónica sobre coisa nenhuma" e que é tanto, deixando ficar no ar, vibrando além do texto, o absurdo de tantos fenómenos e situações ainda hoje nossas quotidianas. É também toda uma arte quase silenciosa de desacelerar indignações definitivas.São como é evidente múltiplos os temas das crónicas. Alguns datados, não sobrevivendo a não ser por curiosidade histórica ou sociológica, outros igualmente datados, mas que não deixarão de trazer a muitos leitores, sobretudo de uma certa geração, casos ou polémicas ainda reconhecíveis, por entre sorrisos talvez, melancolicamente. Por exemplo, o alarido sentimental que rodeou um filme como "Love Story"; a recordação de uma série televisiva que marcou os espectadores dos anos 70 - A Família Forsyte; o impacte na época dos "shorts": "Quem é que entre nós vai usar, esta Primavera, os tais 'hot pants' de que hoje se fala nos jornais?" São muitas as alusões que nos trazem a medida do tempo e a consciência do quanto é movediço o chão que um dia pisamos. É aliás interessante, sobretudo lembrando que estes breves textos integravam um suplemento "Mulher", ver o modo como Maria Judite de Carvalho trata e sente o fenómeno "moda". Mais do que uma apreciação local ou o ajuizar de algum costureiro ou tendência (a autora nunca se aproxima o suficiente para julgar), ela torna na sua distância sensível a própria temporalidade de tudo quanto nos rodeia e pode parecer sólido. Muitas crónicas extravasam o momento, ou o pretexto imediato que as suscitou, e mantêm ainda hoje pertinência e actualidade, dão-nos até instrumentos certeiros de mediação para o real - "Anteontem encontrei uma elegante, hoje foi uma definitiva. Conhecem o género, não é verdade? Há muitas mais ou menos definitivas. Esta sempre o foi totalmente, sem a menor hesitação. Para ela, o filme que foi ver é horrível ou óptimo, o livro que acabou de ler excelente ou péssimo, a última pessoa que conheceu um amor ou detestável. Esta definitiva que hoje encontrei não receia, nem ao de leve, enganar-se, não duvida nem um bocadinho da sua possibilidade de julgar. É uma criatura feliz. (...) Creio que nunca chegou a cair. Quando vem no ar, esquece o problema e segue em frente, esvoaçando. Quando aterra, a sua certeza é outra qualquer, mas certeza também." Pela pena de Maria Judite de Carvalho, estamos sempre perante um mundo em retracção de si mesmo, revelado por um sujeito intencionalmente isento de subjectividade, uma energia rarefeita. Trata-se de uma espécie de poética do desamparo. Essa distância activa delicadamente um campo de ironia e mesmo de auto-ironia. Os dados são lançados com elegância, ao leitor de julgar e sentir - "Visita à Feira da Ladra (...) Foi numa dessas voltas que vi a caixinha de música e que tive imediatamente a certeza de que era ela. A certeza absoluta. Reconheci a paisagem da tampa. Voltei-a com cuidado sob o olhar desconfiado da barraqueira. Lá estava, no fundo, gravada a inicial do meu nome de criança. Abria-a e voltei a escutar o minuete dos meus dias maus, porque só quando estava doente a caixa de música emergia da gaveta das maravilhas e surgia junto de mim. Quanto? - perguntei por perguntar, só levava comigo duas ou três notas de vinte escudos. - Quatrocentos. Como estava ali na Feira da Ladra?(...) Coloquei-a de novo no seu lugar (...). A minha amiga francesa exibia, de resto, o seu ferro de engomar embrulhado num jornal. Viemo-nos embora." Nada disto significa ausência de visão crítica do mundo, subliminar, que atravessa particularmente os costumes e os imaginários da pequena e média burguesia lisboeta e que torna sistematicamente presente a injustiça social, o consumismo desenfreado nascente e, como é óbvio, a vida das mulheres de então. Vida chamada sobretudo pela descrição de diversos comportamentos masculinos, até nas próprias mulheres, situações não ajuizadas, apenas devolvidas ao leitor, situações que falam friamente por si. Não há feminismo activo, poderoso, aqui, mas sim uma percepção feminina das coisas, um modo feminino na natureza dos traços mínimos que se subtraem ao mundo para o contar tal e qual ele é. E nada disto é marcado pelo ressentimento, até porque a escrita ter sido esvaída das instâncias do desejo, do poder e do querer. Como se preferisse não.Apesar de tudo, reconhecemos com facilidade e agrado nestas crónicas organizadas por Ruth Navas, a autora de tantos contos e novelas que discretamente marcou a literatura portuguesa da segunda metade do século XX.

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