A magia de um espectáculo desconcertante

A ópera do século XX tem marcado uma presença muito significativa na programação musical da cidade do Porto. Desde 2001, Capital Europeia da Cultura, a lista é pouco menos que impressionante: "Brundibar", "Wozzeck", "Turn of the Screw", "Inês de Castro", "Melodias Estranhas", "A Demolição", "Três Extravagâncias" e "Punch and Judy", agora estreada. Entre as produções locais e as importadas, misturando obras do grande repertório com estreias de obras nacionais, mobilizando um alargado número de intérpretes e formações (com destaque para os nossos jovens cantores e para a presença regular do Remix-Ensemble), servindo-se dos palcos tradicionais (Coliseu, Rivoli, Teatro S. João), mas aventurando-se também por espaços menos convencionais (Museu do Carro Eléctrico, Central Eléctrica do Freixo, Galerias do parque de estacionamento da Casa da Música), contemplando uma diversidade de registos e de públicos - esta vasta acção concertada tem permitido colocar a música de hoje no seu verdadeiro lugar: em diálogo com o público, sem "capelas", nem medos. Ao contrário do que previam algumas vozes reticentes, os êxitos sucederam-se e as lotações esgotaram. "Quem tem ouvidos para ouvir..."Desta vez aconteceu a estreia nacional de uma ópera assombrosa, "Punch and Judy", criada em 1968 por um dos maiores compositores britânicos do nosso tempo, Harrison Birtwistle. Escrita sobre um originalíssimo libreto do pianista Stephen Pruslin, esta espécie de anti-história inspira-se em figuras homónimas dos populares "robertos" da tradição inglesa (Punch e Judy).A entrada neste singular universo não é imediata, já que a obra é absolutamente desconcertante. Construída para além (ou ao lado) de qualquer nexo causal ou narrativo, a sequência do texto - e por isso mesmo, da música e do espectáculo - revela diversas afinidades com "Alice" (ou com as "Três Extravagâncias" que vimos recentemente no Rivoli), a menor das quais não é certamente a persistência do "nonsense" ou daquela perversidade gratuita que por vezes aflora nas brincadeiras das crianças e que tanto nos perturba. Tão gratuita é a crueldade dos crimes de Punch, como os seus momentos de ternura e de paixão. Não há certo nem errado, não há julgamento moral, as personagens existem, as coisas apenas acontecem, tal e qual como em Alberto Caeiro.A escrita musical é de rara felicidade: aberta e ágil, de raiz atonal, sem disfarces ou concessões. A forma global está estruturada nas inúmeras recorrências do libreto - melodrama, tocata, música de viagem, serenata de Punch, rapsódia de bela Polly, coral da Paixão, etc. -, elementos que aparecem ciclicamente e que constituem a tábua de salvação do espectador. Passa-se por todos os quadrantes, da linha melódica mais angulosa ao mais singelo recitativo, numa escrita em que a força do ritmo ou a depurada utilização dos registos, dos timbres e das dinâmicas se revelam de uma acentuada teatralidade. Para além disso há momentos mágicos, de uma escrita fabulosa: os "corais da paixão" ou o "recitativo e ária da paixão", de Judy, entre muitos outros. Este é um espectáculo intenso, potenciado por uma plateia transformada em palco, tirando excelente partido do fantástico cenário que resulta de o espectador assistir à ópera sentado no palco. À palavra pela palavra (do libreto) corresponde logicamente o teatro pelo teatro (da encenação), numa economia de meios em que a composição plástica e a estilização desempenham um papel fundamental no desenho dos espaços e na coreografia dos movimentos. Numa encenação (José Wallenstein) também ela desconcertante e ágil, onde tudo funciona, merece referência a cenografia (João Mendes Ribeiro) e os figurinos (Filipe Faísca), com destaque para mais um excelente trabalho de desenho de luzes (Jorge Ribeiro), com pormenores de grande eficácia plástica, como por exemplo na iluminação "coreografada" das colunas da sala. Os intérpretes foram todos excelentes, sem excepção: desde a versatilidade vocal e teatral de Leigh Melrose à expressiva voz de Carole Wilson, passando pelo omnipresente Peter Savidge e pelos agudos cristalinos de Sarah Tynan, sem esquecer Andrew Rees e Keel Watson (nomeadamente nas diversas cenas de conjunto). O desempenho do Remix-Ensemble foi notável, mais uma vez, numa partitura em que a complexidade da execução corresponde a uma evidente eficácia musical e teatral. Por último, aquilo que deveria vir no início: é uma "sorte" e uma honra que uma formação com a qualidade deste Remix possa ser dirigida por um maestro como Stefan Ausbury! Não há palavras. Punch and Judy A ópera assombrosa e desconcertante de Harrison Birtwistle teve honras de execução e encenação notável a todos os títulos

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