Maria Callas: o mito, 25 anos depois

Foi dos mais extraordinários fenómenos do canto do século XX, e provavelmente de toda a história da música. Vinte milhões de discos vendidos em todo o mundo, um sucesso talvez só comparável aos dos álbuns dos Beatles.

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Callas ascendeu ao estatuto de mito, objecto de culto e fenómeno de massas Público

No dia 16 de Setembro de 1977, há precisamente 25 anos, Maria Callas morria, sozinha, no seu apartamento de Paris. Tinham passado quase 20 anos sobre o período áureo da sua carreira e os seus gloriosos triunfos nos palcos do Scala de Milão, do Covent Garden de Londres ou do Metropolitan de Nova Iorque. Nos seus derradeiros tempos neste mundo, o seu canto era apenas uma sombra pálida de outras eras - a sua última exibição num palco de ópera tinha sido em 1965, no Covent Garden, e a última vez que cantou ao vivo foi durante a infeliz digressão de 1973-74 - e a sua vida pessoal marcada por um sofrimento sem retorno, depois do milionário Onassis a ter abandonado e casado com Jacqueline Kennedy.

Citando as palavras do musicólogo italiano Rodolfo Celletti, especialista em "bel canto", Callas viveu a sua vida como uma das suas trágicas heroínas. Segundo os requesitos das mais tradicionais personagens femininas da ópera, o seu destino foi cantar, sofrer e morrer.

Mas, tanto em vida, como na morte, Callas ascendeu ao estatuto de mito, objecto de culto e fenómeno de massas, uma dimensão que permanece com a mesma vitalidade e continua a despertar um inesgotável fascínio. Em entrevista à revista "Diapason" (Setembro, 2002), o director da EMI francesa, Alain Lanceron, fala de vinte milhões de discos vendidos em todo o mundo, um sucesso talvez só comparável aos dos álbuns dos Beatles. Callas foi dos mais extraordinários fenómenos do canto do século XX, e provavelmente de toda a história da música, mas para o mito, como para todos os mitos, contribuiu tanto a sua estatura artística como a sua imagem e vida pessoal. A mulher de constituição forte e desajeitada dos primeiros tempos de carreira deu lugar à elegância e "glamour" da actriz-cantora, atenta à moda e de visual cuidado, do final dos anos 50. A imprensa invadia constantemente a sua vida privada - o divórcio de Meneghini, o seu caso com Onassis - e por vezes exagerava enganosamente aquilo que poderíamos chamar caprichos de diva: quezílias com produtores e directores dos teatros de ópera, rivalidades entre colegas...

No plano musical, a construção do mito não deixa de ter o seu quê de paradoxal. Depois de Callas, o mundo do canto nunca mais foi o mesmo, mas, curiosamente, não lhe podemos apontar seguidores directos ou falar de uma escola Maria Callas. O auge da sua carreira foi curto - uns escassos 14 anos, entre 1950 e 1964 -, a sua voz era pouco homogénea e apresentava diferenças consideráveis entre os registos, o timbre era inconfundível (mas não especialmente belo), em momentos de tensão a voz soava mesmo gutural ou agreste... Numa cantora menos genial qualquer destes problemas poderia ser fatal. Hoje, com a evolução da técnicas e do gosto, talvez fossem ainda mais fatais. Todavia, se fosse viva dificilmente teria rivais. Callas viveu numa época dourada do canto, contando entre as suas rivais com monstros sagrados como Renata Tebaldi ou Magda Olivero e, no entanto, consegue cintilar por cima delas. Qual era o segredo de "La Divina"?

Talvez a resposta seja tão simples e tão enigmática como o génio. As imperfeições que um ouvido objectivo pode detectar no seu canto foram sempre literalmente esmagadas pela sua genial musicalidade, pela entrega sem limites, pelo poder dramático excepcional, pelo risco, dons por vezes ausentes de vozes mais perfeitas. Cantar e representar eram, para ela, indissociáveis. Não hesitaria distorcer uma linha vocal em favor de um efeito dramático ou da verdade emocional.

Uma das suas supremas virtudes era a infinita variedade de cores e acentos que conseguia extrair da voz. Outra, a versatilidade. A atribuição de determinados papéis ou repertório a uma tipologia vocal específica foi completamente subvertida por Callas. Não só era capaz de dar uma cor diferente a cada personagem como contribuiu para o desaparecimento das fronteiras tradicionais entre o repertório de soprano lírico e o de soprano dramático - passando ainda por algumas personagens de mezzo-soprano -, como não sucedia desde os tempos heróicos de Rosa Ponselle e Claudia Muzio no início do século XX. Trouxe também aos papéis de coloratura uma profundidade dramática sem precedentes. Para Rodolfo Celletti, mais que uma revolução vocal, Callas operou uma revolução musicológica, ao recuperar uma emissão vocal pré-verista (sob certos aspectos, também pré-verdiana), que teve consequências fundamentais nas gerações futuras. Entre elas encontra-se a recuperação de um fraseado variado e analítico, cujas nuances não só traduzem o conteúdo da partitura como realçam o sentido das palavras e o seu conteúdo emocional, o retorno ao verdadeiro virtuosismo (que consiste em tornar a coloratura expressiva e não uma mera exibição circense) ou o renascimento das tipologias vocais e psicológicas da ópera neo-clássica, frequentemente deformadas pelas práticas de interpretação do pós-romantismo e do verismo.

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