Torne-se perito

Vila Faia, a prova de que podia haver telenovela portuguesa

Quando no estúdio da Abrunheira, em Sintra, a imagem no televisor anunciou "O programa segue dentro de momentos", susteve-se a respiração e os olhares expressaram receio com o que poderia ter acontecido ao rapaz que ainda há pouco partira dali de moto para levar à RTP a bobine com o episódio de Vila Faia a exibir naquela mesma noite. O suspiro de alívio ouviu-se quando a emissão lá seguiu com mais 25 minutos de história da primeira telenovela portuguesa. O sobressalto só aconteceu uma vez, mas o fantasma de falhar a emissão rondou sempre a produção de Vila Faia, porque foram muitas as vezes que o episódio acabado de montar saiu do estúdio, ao final da tarde, para ir para o ar no serão da RTP. "Era uma grande aventura", conta Nicolau Breyner, que participou na escrita do texto e fez a direcção de actores, além de interpretar o protagonista de Vila Faia. A pouca experiência na linguagem telenovelesca e os escassos meios de produção exigiram muito dos profissionais envolvidos na produção. "Dormimos dezenas de vezes no cenário e na roulote da Edipim [a produtora]", relembra o actor, que encarnou o protagonista João Gudunha. Trabalhava-se horas a fio, mas com muito amor à camisola. "Depois de gravar 12 e 13 horas por dia ainda ficávamos nos copos." A maior parte das cenas foram filmadas apenas com duas câmaras e, às vezes, a avaria de uma delas obrigava a apelar à imaginação para trabalhar só com a outra. O próprio carro de exteriores foi comprado pela RTP para gravar jogos de futebol e não para fazer ficção. "Tivémos que improvisar muito", lembra Thilo Krassmann, produtor e um dos autores da música do génerico. Quando a telenovela nacional começou a dar os primeiros passos já o Brasil tinha encantado os portugueses com Gabriela e O Casarão. Na forma de produção, os dois países estavam separados por um oceano. "Se compararmos o modo de produção da Globo - que na altura já contava com 15 anos de existência - com a experiência em Portugal havia uma diferença abissal", observa o realizador, Nuno Teixeira. Mas - sublinha - apesar dos meios mais reduzidos "não foi por isso que Vila Faia deixou de ter qualidade".A pressão que a equipa sentia era evidente, não só pelos escassos meios como pelo ritmo de produção. Da escrita dos diálogos à gravação das cenas mediavam apenas 20 capítulos. "Tínhamos a pressão para não falhar nenhum episódio", conta Nuno Teixeira, mas essa proximidade também trouxe uma vantagem: "a possibilidade de corrigir". Mesmo sem conhecer as audiências (o sistema só surgiria quase dez anos depois), não custa concluir que Vila Faia foi um êxito pelo nível de popularidade que alcançou. O impacto foi de tal ordem que, no final da saga, o próprio primeiro-ministro veio a público salientar o sucesso da primeira telenovela portuguesa. Esse telespectador atento, então chefe do Governo, era Francisco Pinto Balsemão, que já tinha no seu currículo o lançamento do "Expresso", mas estava ainda longe de se tornar dono de uma televisão. "Balsemão era assumidamente um espectador da novela e nunca escondeu isso", diz Nicholson, recordando que o primeiro-ministro "foi ao estúdio e disse que não perdia um episódio". O fenómeno de popularidade de Vila Faia - aliada aos primeiros passos de ficção televisiva em Portugal - tornou-se num terreno fértil para algumas situações caricatas. Uma senhora não quis aproximar-se doactor Carlos César (o vilão Mariano), recusando-se a partilhar o elevador com ele. "Não ando de elevador com assassinos", terá dito. Ao próprio Nicolau Breyner, um dos autores do texto, outra senhora avisou-o do que iria acontecer ao seu personagem e dos perigos que o espreitavam no enredo.Mas a história que mais revoltou os telespectadores foi a morte de Mariete (Margarida Carpinteiro), que desempenhava o papel de prostituta. "Recebemos cartas, ameaças e tive uma mulher-a-dias que se despediu porque não queria que ela morresse", recorda Nicholson, acrescentando que no episódio em que a personagem morre "deve-se ter atingido um dos maiores picos de audiência de televisão em Portugal". Nicolau Breyner, que se assume como "o assassino de Mariete", conta que a decisão não foi tomada de ânimo leve porque o público não queria que ela desaparecesse. "Foi muito ponderada, discutiu-se muito, mas eu achei que dramaturgicamente só podia funcionar assim". O enredo que girava em torno de João Gudunha (que revelou Nicolau Breyner ao grande público como actor dramático), da família Marques Vila, da família Marinhais ou da tasca da Ti Ermelinda constituiu um "fenómeno de inegável significado sociológico e cultural", como escreveu na época o "Expresso". Essa importância é visível até no tratamento jornalístico que foi feito. Sem pudores, o respeitável semanário dedicou à telenovela e aos seus protagonistas várias páginas no seu caderno mais nobre e trabalhos aprofundados na revista. Apesar da popularidade, Vila Faia não foi poupada nas críticas. Trama policial excessiva, imaginário pobre ou ausência de uma marca genuinamente portuguesa foram algumas das alfinetadas cravadas pela imprensa da época. "Todas aquelas histórias cruzadas podiam perfeitamente passar-se em qualquer outra grande cidade suburbana da Europa", escrevia Jorge Leitão Ramos, no "Expresso", em Junho de 1982. Francisco Nicholson não concorda com a crítica de que o texto era pobre. "Há sempre uma elite (ainda hoje existe) que tenta minimizar os trabalhos. Ficava bem dizer que aquilo era medíocre". Para Nicolau Breyner, a Vila Faia "foi muito deitada abaixo", mas a telenovela seguinte, Origens, recebeu mais críticas. O grande desafio de Vila Faia, segundo Nuno Teixeira, é que foi produzida numa época em que existia um grande descrédito da produção nacional. "Havia um padrão - o brasileiro - que era considerado o de excelência. Não se reconhecia qualidade aos actores e realizadores, eram considerados muito teatrais e a telenovela muito lenta. Tivémos que provar que não era assim." Francisco Nicholson recorda também a ideia dominante de que "a telenovela era um género só acessível aos brasileiros". Por isso, diz, "não se achava que fosse possível erguer uma telenovela em Portugal".

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