Nike

A Nike é uma voz que fala ao ouvido dos campeões mundiais e dos anónimos. A uns, pede para marcarem golos e baterem recordes. A outros, que se levantem do sofá, fechem os olhos às solicitações do quotidiano e pratiquem desporto. E a todos, que se transcendam com a mesma paixão e autenticidade. "Just do it" são as três palavras mágicas e libertadoras proferidas pela deusa da vitória.

Se todas as histórias têm um começo, esta começou assim. Nos anos 70, um importador americano de sapatos desportivos chamado Phil Knight resolveu criar a sua própria marca. E até já tinha um nome em cima da mesa: Generation Six. Felizmente para ele, para a marca e para todos nós, um empregado seu teve um sonho com uma sugestão mais criativa e menos complicada. E se a marca fosse baptizada como "Nike" (pronuncia-se naikey), o nome da deusa grega da vitória? O nome não reuniu grande reconhecimento ou entusiasmo. No entanto, era curto, simpático, fonético e relevante (afinal, foi na Grécia que nasceu o desporto com os Jogos Olímpicos). A mitologia fornecia um símbolo capaz de se adaptar e dinamizar para uso comercial e o nome acabou por ficar, para se tornar numa das palavras mais conhecidas no mundo inteiro. Como não tinha símbolo visual, pediu a uma estudante de arte da Universidade de Portland que desenhasse o logotipo. O símbolo devia sugerir o movimento e a velocidade, ser visível à distância e ter riscas, como as do famoso logotipo da Adidas. Por apenas 35 dólares (sim, leu bem!), Carolyn Davidson desobedeceu-lhe, pelo menos no que diz respeito às riscas, e criou um símbolo estético que foi baptizado com o nome de "swoosh" e é hoje um dos ícones mais famosos da cultura contemporânea. "Swoosh" é a onomatopeia para o som sibilante de uma bola em movimento e traduz o dinamismo do desporto. Ou, numa leitura mais profunda, é a asa da deusa grega da vitória, presente no Olimpo ao lado de Zeus, a empurrar os atletas para a vitória. Parece que Phil Knight não gostou muito da proposta, mas à falta de melhor, acabou por aceitá-la. No início, o "swoosh" era um elemento destituído de simbolismo, um simples indicador visual. A apropriação de valores viria mais tarde, com a comunicação publicitária. Hoje, o "swoosh" expressa uma filosofia e projecta uma personalidade multidimensional, sendo um emblema copiado e falsificado vezes sem conta nos quatro cantos do mundo. Há muitas outras histórias que se contam sobre a Nike. Uma delas está relacionada com a invenção do slogan "Just do it". A forma como a famosa assinatura para a marca terá surgido é uma história cuja verdade não está inteiramente confirmada, o que só contribui para o seu mito. Parece que há alguns anos, a dupla criativa encarregue de desenvolver um conceito novo para a marca nunca mais encontrava um caminho. Dia após dia, o director criativo foi ficando mais impaciente. E um dia, cansado de esperar, terá dado um murro na mesa, dizendo: "Just do it". Ou seja, façam isso de uma vez por todas e ponto final. Ao que um dos criativos terá respondido: é isso mesmo, é essa a nova assinatura da Nike.Mas afinal, o que quer dizer "Just do it"? "Just do it" transcende o desporto e é uma filosofia de vida promovida pela Nike para atletas e não atletas, homens e mulheres, jovens e idosos, crentes e ateus. É uma voz colectiva que cresce dentro de nós, que grita junto ao ouvido e pede para se taparem os olhos às inúmeras solicitações do dia-a-dia. É uma consciência que não aceita desculpas. Podia ser um recado deixado por uma mãe. É o chamamento de um anjo ou a tentação de um diabo, que se senta no nosso ombro e nos inquieta. Pode ser a ordem de um treinador exigente. Aliás, pode ser tudo aquilo que nós quisermos. As centenas de anúncios publicados pela marca abordaram temas tão diversos como os direitos das mulheres, o racismo, a marginalidade, a educação, a alta competição, o espírito de sacrifício ou as deficiências físicas. "Just do it" diz-nos: não interessa quem és. Interessa é que pratiques desporto e te tornes uma pessoa melhor. E nós acreditamos.O poder da Nike está ligado aos heróis afro-americanos que promoveram a marca desde meados da década de 80, como o basquetebolista Michael Jordan, os velocistas Carl Lewis e Michael Johnson, ou, mais tarde, o golfista Tiger Woods. E também a figuras como Andre Agassi e Monica Seles, no ténis ou Ronaldo, Luís Figo e Edgar Davids, no futebol. Os ténis e os equipamentos desportivos das diferentes modalidades são talismãs que permitem aos seus utilizadores voarem para o sonho. No caso dos atletas de alta competição, para a vitória. No caso do comum mortal, para um sonho que não é o seu. Um anúncio que ficou para a história foi o do atleta para-olímpico a cortar a meta na pista de atletismo numa cadeira de rodas, mostrando orgulhoso o símbolo do super-homem no peito. Ou diversas frases que expressam verdadeiras filosofias como: "Não se ganha a medalha de prata. Perde-se a medalha de ouro", "Os amigos mentem, os inimigos mentem, mas os cronómetros não" ou ainda "A Nike não discrimina raças, sexos ou religiões. A Nike discrimina o primeiro, o segundo e o terceiro lugar". A marca também se manifestou contra a tirania dos modelos, da beleza e das medidas e contra os padrões que nos dizem o que devemos ou não devemos fazer. A partir de meados da década de 90, "Just do it" tinha-se tornado parte da linguagem do dia-a-dia e a marca deixou de assinar Nike, num sinal de intimidade com o consumidor. Como aquelas pessoas que assinam uma carta com a palavras "eu" porque nós sabemos quem é.Mas no meio de uma invejável história de sucesso há sempre um capítulo menos feliz. Apesar da conceptualização dos sapatos, o seu design e marketing serem desenvolvidos em Beaverton, no Oregon, a manufactura de todo o material resulta da subcontratação de mão de obra em Taiwan, China, Indonésia e Vietname. Os escândalos pela descoberta da exploração do trabalho infantil no terceiro mundo desiludiram a opinião pública e a imagem que a maioria das pessoas tinha da marca e encheram páginas de jornais e revistas, acusando-a de hipocrisia. Afinal, a Nike, apesar de ter nome de deusa, era humana, demasiado humana e como todas as pessoas, tinha e tem as suas contradições. Neste caso, entre humanismo e capitalismo, filosofia e fábricas, imagem e prática. As mudanças sociais, o seu desejo de independência e o aumento considerável de poder de compra fizeram das mulheres um grupo alvo atraente. A Nike desenvolveu uma filosofia para o universo feminino, dirigindo-se às mulheres e recordando-lhes que elas têm um corpo e uma alma. A campanha da Goodby, Silverstein & Partners San Francisco aborda diferentes aspectos do quotidiano das mulheres. E se os anúncios têm tanta força e credibilidade, é pelo realismo dos exemplos encontrados. Tratam-se de imagens omnipresentes no quotidiano, o registo de gestos banais como formulários do local de trabalho, e-mails recebidos, a programação da televisão, um extracto bancário ou ainda a conta de um jantar entre um grupo de amigos. No meio de tanta informação, a Nike ocupa apenas uma linha em cada anúncio. Uma linha no horário de trabalho, na conta do restaurante, no extracto bancário, na programação televisiva e nas mensagens recebidas por correio electrónico. Nessa linha, mostra imagens de mulheres solitárias a correrem ou a fazerem exercício no horizonte. Perto do mar, subindo uma escadaria, correndo numa ponte com a cidade como cenário de fundo, num deserto rochoso ou ainda num espaçoso ginásio. Os textos curtos exploram os sentimentos de culpa por não se praticar desporto e combatem esse adversário que é o hábito. Na lista de mensagens recebidas por correio electrónico, umas normais, outras urgentes, há convites para festas, bebidas, para um jogo de baseball e um serão de karaoke. O texto diz: "Tomar a resolução de praticar desporto pode ser a única coisa de que não se vai arrepender. The Air Trainer Swift. Perfeito para os courts, estrada ou ginásios. Ou para todos os locais onde o seu computador portátil não estiver". A programação de televisão de todos os canais tem notícias, séries, jogos de futebol e filmes. O canal Nike oferece um programa completamente diferente. "Já alguma vez olhou para trás no fim de um serão e desejou ter feito outro programa? Os ténis Air Imara, desenhados especialmente para mulheres, são tão confortáveis como o seu sofá. Mas nada parecidos com ele". Um formulário contabiliza as horas de trabalho espartilhadas entre semanas e dias, das 7 às 17. As horas extra, a partir das 6 da tarde, significam liberdade e é altamente improvável que alguém chegue ao fim da semana, olhe para trás e lamente ter praticado desporto. A conta do restaurante é de uma mesa de sete pessoas que consumiram pratos e bebidas mexicanas como asas de galinha com picante e margaritas. "Na manhã seguinte, há grandes hipóteses de você não acordar e lamentar ter corrido. Os Air Converge foram desenhados especialmente para mulheres, para que possa correr para longe. De preferência para bem longe de outra noite de happy hour". O extracto bancário pertence a uma consumidora que se limita a adquirir bens relacionados com a sua aparência como sapatos, malas e jeans e a fazer despesas no cabeleireiro. "Não deve haver muitas coisas que a façam sentir melhor do que praticar desporto. O Server Max é ideal para a estrada, o ginásio e, se for mesmo preciso, para o centro comercial". O espaço visual introduzido pela Nike coloca-nos diante de um mundo que traz o signo do infinito consigo. No entanto, as linhas que rasgam o horizonte das folhas dos anúncios e da vida estão em plena harmonia cromática com o contexto em que surgem. Talvez para dizerem que é possível haver uma convivência pacífica entre os vários aspectos sociais da vida de uma mulher. Não é preciso deixar de fazer tudo aquilo. Basta fazer desporto. Vencer uma noite de zapping no sofá pode ser tão importante como ganhar uma medalha numa pista de atletismo. Correr para longe de uma mesa cheia de comida, bebidas e fumo de cigarros é melhor do que bater um recorde. Resistir aos convites dos amigos para intermináveis programas pode ter mais valor do que fazer os mínimos para entrar numa competição. A Nike, porta-voz do desporto, posiciona-se como um terapeuta, um psicólogo, um médico que prescreve a sua prática. Ficar em boa forma física é uma actividade para a vida e permite a conquista da paz interior. Nesta luta entre a vida social e o individualismo, entre o sedentarismo e a liberdade, cada um tem os seus adversários. Muitas vezes, o maior adversário somos nós próprios. A Nike abre uma brecha na amálgama de dias sempre iguais, feitos de formalidades, tarefas inúteis e conversas fúteis. Arranca-nos às garras da rotina e permite a descoberta do silêncio, da liberdade e da auto-realização. Para a Nike, o desporto é uma forma alternativa de ser, umas vezes terapêutica, outras transcendente ou mesmo heróica. Há uma aura de mitologia e de magia que envolve a prática do desporto e a marca explora o potencial heróico em todos nós. E por falar em magia e em heróis, um dos segredos do futebol deve ser este: basta uma bola, um pequeno espaço e jogadores com talento. O futebol, forma de promoção social, é universal e não exige quaisquer meios. Mas apesar de ser um desporto de prática simples, a sua significação é extremamente complexa. O jogo é a máscara de outras actividades e tem ritos, cerimónias e crenças semelhantes às de uma civilização longínqua ou arcaica. E ainda um elemento guerreiro que contribui para o seu fascínio. Há muito que o futebol deixou de ser um jogo para se tornar num espectáculo que atrai o interesse apaixonado de biliões de espectadores. Jogo imprevisível, onde os factores acaso ou sorte podem vencer o talento, o futebol é também uma indústria poderosa. Os seus praticantes são verdadeiros deuses dos estádios, figuras mediáticas pagas a peso de ouro. Talvez por isso se tenha difundido a convicção de que os jogadores não jogam pelo prazer de jogar, mas sim pelo dinheiro. A Nike contraria esta convicção com anúncios que demonstram o prazer que as estrelas do futebol mundial têm em jogar. O que não deixa de ser um paradoxo, porque todos sabemos que as próprias vedetas só entram nos anúncios por serem muito bem pagas para o fazerem. Jogando o futebol pelo futebol, comportam-se umas vezes como crianças, tão seguros das suas capacidades, que não precisam de se levar a sério, como no famoso filme do aeroporto, onde Ronaldo falha um golo frente a uma baliza improvisada. Outras vezes, são verdadeiros heróis, à semelhança do épico jogo no coliseu romano, entre monstros e monstros do futebol mundial como Rui Costa. O último filme da marca, para promover o mundial de futebol, foi realizado pelo ex-Monty Python Terry Gilliam e passa-se no reservatório de um navio no alto mar. Na campanha desenvolvida pela agência Wieden & Kennedy Amsterdam, os anúncios de imprensa e os cartazes veiculam a clandestinidade deste torneio jogado sob o signo do escorpião. O torneio é clandestino porque as regras do jogo são diferentes das verdadeiras, logo ilegais. Este jogo é só deles, não pertence a nenhum clube nem a um canal de televisão. Pertence à sua intimidade e à Nike, que trata por tu os grandes heróis do futebol mundial que patrocina. Os anúncios de imprensa pintados com tinta de spray a preto têm como fundo um pedaço de parede de um prédio, onde já foram colados muitos cartazes a anunciar outros espectáculos. A sua passagem pelas paredes ainda é visível e os cartazes fingem estar colados à pressa, como se a polícia tivesse aparecido de repente. Mostram 24 dos melhores jogadores da actualidade agrupados em equipas de 3, todas elas com nomes sugestivos. São os Tornados de Luís Figo, Ronaldo e Roberto Carlos; os Toros Locos, a equipa de Javier Saviola, Luis Henrique e Frederick Ljungberg; os Cerebrus que têm como cabeças de cartaz Sylvain Wiltord, Liliam Thuram e Edgar Davids; a Equipa del Fuego formada por Hernan Crespo, Claudio Lopez e Gaizka Mendieta; os Tutto Bene de Thomas Rosicky, Fabio Cannavarro e Rio Ferdinand; The Onetouchables dos talentosos Patrick Vieira, Paul Scholes e Ruud Van Nistelroy; o Triple Expresso a que dão rosto Francesco Totti, Hidetoshi Nakata e Thierry Henry e os Funk Seoul Brothers, representados por Denilson, Ki Hyeon Seol e Ronaldinho Gaúcho. Cada equipa tem a sua personalidade, mas todos os jogadores têm caras ameaçadoras, expressões sérias e concentradas. Os seus rostos estão representados de uma forma rude, a traços negros. A mancha escura sobre os olhos torna-lhes o olhar carregado e revela a sua obsessão. Além do "swoosh", cada cartaz tem um carimbo com um escorpião, um mal fatal para quem lhe toca. O estilete da sua cauda, repleto de veneno, é o sinal de morte próxima, assim como a morte súbita do golo dita a derrota iminente do adversário. Perigoso aracnídeo, o escorpião é rei entre os insectos, tal como o futebol é rei entre os desportos. Animal negro e de espírito belicoso, foge da luz e vive escondido na noite e na obscuridade e combina com a clandestinidade do torneio. No filme, o enfant terrible Eric Cantona, essa figura francesa perversa, polémica e louca que maravilhou o mundo do futebol num passado não muito distante, tem o papel de director do espectáculo. É o árbitro mefistofélico que dita as regras, aliás a única regra. O primeiro a marcar ganha o jogo neste torneio onde não há cartões amarelos ou vermelhos, foras-de-jogo, super-estádios com milhões a assistir, 11 de cada lado, bandeiras e cachecóis, mascotes ou cânticos, nem sequer guarda-redes. Neste cenário surreal, que mais parece tirado de um filme de James Bond, os jogos desenrolam-se, rápidos e furiosos, ao ritmo frenético da música de Elvis Presley "A little less conversation" (parece que o grande mal do futebol é haver conversa a mais e neste tira-teimas entre vedetas, o importante é agir), remisturada pelo D.J. JXL. Neste autêntico fight-club, o futebol tem qualquer coisa de circo, em que cada um mostra as suas habilidades sem rede. A bola é a arma que dispara, num espectáculo mais rápido e mais dramático do que o verdadeiro e com uma violência latente. O futebol, na sua componente lúdica levada ao extremo, é jogado intensamente porque é a razão de ser das suas vidas, no simulacro de um campeonato em que a comunidade de heróis partilha a filosofia Nike. Nesta arena de emoções e talentos, encena-se o lado obscuro do futebol. Afinal, por mais jogos que um espectador veja, nunca perceberá o que sentem verdadeiramente as estrelas. As estrelas são seres fora do comum, que reconhecemos mas não conhecemos. Retiram-se e retiram-nos da realidade quotidiana e da monotonia. O seu talento fala para a crença que todos temos no heroísmo, numa grandeza obscurecida pela vida contemporânea. E permite-nos ser participantes do próprio espectáculo, sem nunca o sermos realmente. Por momentos, tornamo-nos cúmplices da excitação e somos heróis.A Nike dedicou-se primeiro, ao desporto, depois ao conceito do desporto, à transcendência através do desporto e finalmente, ao poder ideológico do desporto. A marca que dizia num anúncio: "Não vendemos sonhos. Vendemos sapatos", deixou de vender sapatos. E os sapatos deixaram de ser um bem material. Têm o poder da imagem e das ideologias. Agora, a Nike vende também equipamentos e fatos de treino para todos os desportos de a a z, bonés, mochilas, impermeáveis contra a chuva, relógios com cronómetros e tudo o que eles podem imaginar. Porque para a marca, o desporto é um veículo da comunicação de massas. E enquanto as fábricas na Ásia são entediantes (e por vezes polémicas) linhas de montagem, os anúncios publicados no mundo inteiro são excitantes demonstrações da voz original e irresistível da Nike, que chama por todos e fala com cada um. De deusa para deuses, com os melhores atletas do mundo. E de deusa para humanos, com a maior parte dos habitantes do planeta. A todos diz as três palavras mágicas e libertadoras: "Just do it". Cabe a cada um descobrir o seu significado.

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