TV Rural - quando o campo se revia no ecrã

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Durante 31 anos, impreterivelmente ao domingo, o engenheiro Sousa Veloso entrou pelas casas portuguesas DR

Foi o programa de maior longevidade da televisão portuguesa. Nascido na cabeça de um ministro, começou por ser apresentado por Fialho Gouveia e Henrique Mendes. Mas cedo o rosto de Sousa Veloso se tornou o do TV Rural, programa sobre um Portugal que foi perdendo espaço nos ecrãs.

"Despeço-me com amizade até ao próximo programa." As palavras saíam compassadas. Um sorriso largo, numa cara redonda, bonacheirona, emoldurada por umas sobrancelhas e patilhas farfalhudas. Como pano de fundo, o verde. De um pinhal, uma vinha, um pomar, um batatal, um milheiral. Ou o amarelo ouro. De um campo de trigo ou centeio prestes a vergar-se perante a foice ou o engenho da ceifeira. Ou ainda vacas e ovelhas, ouvindo-se a melodia dos chocalhos.

Durante 31 anos, impreterivelmente ao domingo, o engenheiro Sousa Veloso - José de seu primeiro nome - entrou pelas casas portuguesas, fossem elas no campo, na praia ou na cidade, com o programa TV Rural. Trazia os avanços tecnológicos que o sector agrário conhecia dentro e fora do país, dava conta dos movimentos associativos dos agricultores, das últimas medidas governamentais, marcava presença nos certames, descortinava um ou outro segredo no cultivo desta ou daquela cultura, e até falava sobre a gastronomia regional e o folclore.

A meia hora de duração do TV Rural tanto podia ser ocupada com peças sobre a construção de um complexo de estufas ou a deslocação de produtores de leite portugueses à Bélgica. Tanto fazia reportagem num olival onde se varejavam as oliveiras para apanhar a azeitona, como numa casa de granito perdida na serra da Estrela, onde uma mulher aperta o soro do leite num cincho que semanas mais tarde se transformará num amanteigado queijo da Serra.

"Queria chegar a toda a gente e desejava que as actividades agrárias e o meio rural fossem compreendidos e amados pelo meio urbano, que estava a ter cada vez mais supremacia", justifica-se hoje Sousa Veloso. "Tentei ter em conta a diversidade de públicos que assistiam ao programa e falar para as pessoas todas: as do escritório, da fábrica, da enxada e da charrua. Quis entrar em casa de qualquer pessoa e ter aceitação." O programa de maior longevidade da televisão portuguesa nunca foi de férias e somou cerca de 1600 edições. Acabou sem grandes explicações ao autor e apresentador.

Nascido no ministério

A ideia de conceber um "programa informativo dedicado ao desenvolvimento agrário e às pessoas não urbanas" partiu do então ministro da Agricultura, Quartin Graça, em colaboração com o presidente da administração da televisão pública, Camilo Mendonça. Sousa Veloso transformou-o mais tarde num espaço com um leque de interesses bem mais vasto, que abarcava não só a actividade agrícola, como todo o sector agrário, a envolvente paisagística, a gastronomia, o folclore, as festas, feiras e romarias.


No início de 1959, chegou aos Serviços de Informação Agrária do Ministério da Agricultura um pedido da televisão pública de colaboradores para um programa sobre questões agrárias. Sousa Veloso conta que ele e um colega, Monteiro Alves, se ofereceram. Começaram por fazer peças que eram apresentadas por Fialho Gouveia e Henrique Mendes. Poucos meses depois, com a saída de Monteiro Alves para uma carreira académica, o director da RTP, Manuel Figueira, convidou Sousa Veloso para ficar ao leme do TV Rural. O engenheiro não se fez rogado. O "seu" primeiro programa foi sobre o emparcelamento da propriedade rústica.

O sorriso sincero e aberto, alguma timidez inicial, a linguagem simples, afectiva e modesta cativaram o público. E os colegas de trabalho: no início de cada programa o engenheiro informava os espectadores dos nomes dos membros da equipa interveniente na emissão. Sousa Veloso falava de coisas do dia-a-dia, que se encontravam à mesa, de realidades mais ou menos distantes, de gente. Grande parte dos seus espectadores revia-se nesse Portugal rural que o engenheiro vasculhava para trazer à montra da televisão. O campo, a agricultura, a pecuária, tudo estava ali, explicado como se fosse às crianças. Era um serviço público para o agricultor, já que muitos deles seguiam os seus conselhos.

Sousa Veloso foi dos primeiros a utilizar som ambiente nas suas reportagens, em vez da habitual música de fundo para acompanhar filmagens de paisagens. O engenheiro incutiu ao programa um cunho muito pessoal: ele era o autor-produtor-realizador-montador-apresentador do TV Rural. Escolhia os temas, os locais, as pessoas a contactar. Foi dos últimos a trabalhar com filme na 5 de Outubro, preferindo a bobine às pequenas cassetes.

Pioneiro do jornalismo especializado na televisão portuguesa, o TV Rural sobreviveu estoicamente à mudança de regime, especialmente por o seu protagonista se recusar a tomar posições políticas. O programa fazia parte de um grupo de intercâmbio coordenado pela UER - União Europeia de Radiodifusão e denominado Magazine Agrícola Internacional, que lhe permitia receber peças de outras televisões europeias sobre a realidade agrária desses países. Ao mesmo tempo, essas emissoras recebiam as emissões de Sousa Veloso - a RTP chegou a ser a que mais contribuía para o arquivo do grupo.

Confusões na Feira de Santarém

Entre uma mão-cheia de peripécias de 31 anos de programa, Sousa Veloso recorda, entre outros, um episódio que teve lugar nos anos 60, quando fazia a locução em estúdio, em directo, sobre uma reportagem cujas imagens recolhera na Feira Nacional de Agricultura, em Santarém. No certame participava o então Presidente, Américo Thomaz, e uma série de outras individualidades, que estavam a assistir a um desfile de tractores, alfaias agrícolas e animais. A dada altura, Sousa Veloso anuncia, em voz "off": "Reparem, senhores espectadores, neste avantajado bovino de raça charolesa." Mas a imagem que estava nesse momento no ar já não era a do bovino, mas a do mais alto responsável da nação...


O TV Rural "começou por ser emitido em horário nobre, às 20h de domingo, mas com o passar dos anos - e o aumento das horas de programação, a par com a multiplicação de programas - foi subindo na grelha, primeiro para as 19h, depois para o princípio da tarde, onde se manteve durante vários anos". Em seguida passou nas manhãs de domingo e, já nos derradeiros meses, era emitido às 9h de sábado. Sousa Veloso diz nunca ter sido avisado das últimas mudanças de horário que, percebeu então, eram o sinal da vontade de extinguir o programa. Foi o que aconteceu na "rentrée" de 1990.

No seu lugar surgiu À Mão de Semear, apresentado por Abraão Veloso, um engenheiro electrotécnico do Porto, cujo objecto era o mesmo do TV Rural, mas que acabou por ser sol de pouca dura. Pediram a Sousa Veloso que continuasse ligado à produção do novo programa, mas o engenheiro recusou, afirmando sentir-se "moralmente impedido de o fazer".

Na última emissão do TV Rural, Sousa Veloso leu o poema "Adeus à Tapada", do poeta guineense Amílcar Cabral - seu amigo chegado -, em homenagem ao Instituto Superior de Agronomia. Dirigiu-se aos "amigos de todos os cantos de Portugal" e, em vez do "até ao próximo programa", preferiu um "até sempre!".

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