Santos Silva, o "primeiro cidadão do Porto"

Médico, professor, autarca ousado e modelar, ministro, militante devotado da democracia e da República, Eduardo Santos Silva é um desses muitos cidadãos do século passado que olharam a política não como uma guerra entre facções mas como um dever de cidadania.

Houve um tempo, não muito distante, em que as pessoas escreviam cartas. Para comunicar trivialidades do quotidiano, para desabafar emoções e preocupações, para anotar junto dos outros impressões pessoais sobre o devir da vida e dos anos, para exprimir, em textos abertos com juras de amizade, esperanças e desencantos sobre a política, o presente e o futuro, as causas e as lutas para as defender. Durante meses, o historiador Gaspar Martins Pereira estudou e catalogou centenas de cartas como essas, expedidas e recebidas por Eduardo Santos Silva, um destacado militante republicano do Porto, acrescentou-lhe discursos. Depois, redigiu uma breve biografia, recuperou um prefácio de Aquilino Ribeiro e o resultado de todo este trabalho encontra-se hoje na obra "Eduardo Santos Silva, Um Cidadão do Porto", editado pela Campo das Letras. A correspondência epistolar é há muito um precioso instrumento da história, mas a atenção prestada às missivas de figuras gradas dos séculos XIX e XX está longe de esgotar este filão de memórias. Eduardo Santos Silva não teve o protagonismo de Afonso Costa ou de Teófilo Braga no contexto do movimento republicano português, mas, ainda assim, a leitura da obra organizada por Gaspar Martins Pereira não deixa de ser reveladora de um tempo e de um olhar muito especial sobre Portugal e a política que o moldou ao longo de dois terços do século passado. Porque tem como fonte principal o percurso de um homem singular. Médico, professor, presidente da Câmara do Porto que teve o mérito de inaugurar uma política assistencialista ousada para a época, ministro, eterno combatente pela causa republicana - o que lhe valeu a prisão e o degredo -, frequentador assíduo dos círculos oposicionistas em Paris e militante empenhado nas movimentações da oposição a Salazar, Santos Silva, nas palavras de Jaime Cortesão, foi um "'homo bonus', mais e melhor que os antigos homens-bons do Porto", "um mestre de civismo, tolerância e compreensão entre os homens". É impossível ler as suas cartas sem nutrir por ele simpatia e admiração.A obra que a Campo das Letras publicou surge 40 anos depois de uma primeira tentativa frustrada de organizar uma biografia de Santos Silva - dessa ideia original foi, no entanto, recuperado o prefácio de Aquilino Ribeiro. O projecto não teve na época continuidade porque Santos Silva sempre respondeu com "evasivas, desculpas de falta de tempo e disposição" para colaborar com o primeiro autor indigitado para o desenvolver, Manuel Mendes, outro destacado membro da oposição democrática no pós-guerra. Santos Silva tinha, aliás, uma resposta para as suas reticências: "O 'eu' é vocábulo indesejável, incivilidade exclusiva dos autocratas e dos jactanciosos. Aliás, ninguém deve falar daquilo que lhe é peculiar; só os demais têm jus de falar dos que nos é próprio."Eduardo Santos Silva nasceu no seio de uma família da classe média portuense, em Março de 1879. O seu pai, Dionísio, surge na cena política nas alas da esquerda monárquica, mas no 31 de Janeiro aparece já como um destacado militante do movimento republicano. Não admira por isso que aos 13 anos Eduardo Santos Silva redija os seus primeiros escritos políticos na qualidade de "republicano". Assim se assinaria até ao final da vida, em Setembro de 1960. Este livro procura acompanhar o percurso de Santos Silva nos vários domínios da sua vida pessoal, acabando naturalmente por destacar o seu envolvimento no movimento republicano, primeiro no poder, e depois numa longa, e para Santos Silva interminável, travessia na oposição. Lendo as suas cartas e as suas intervenções públicas ao longo de quase 70 anos, é difícil - quase impossível - detectar incoerências no seu pensamento e na sua acção. Republicano pela dedicação à cidadania e ao bem público e democrata por convicção, sempre rejeitou acções políticas violentas - que, nas suas palavras eram "a forma de luta inferior" que deveria ser deixada ao adversário"- e jamais deixou de condenar o salazarismo que impusera ao país um "silêncio impressionante de vozes abafadas". Para ele, a política era uma afirmação de valores que se devia desenvolver como se em causa estivesse um permanente duelo entre cavalheiros, no qual as causas estavam sempre antes dos eventuais efeitos. Respondendo a Raul Teixeira, numa carta datada de Dezembro de 1935, Santos Silva recusa uma intervenção do abade de Baçal junto do Presidente da República para que a sua expulsão do ensino fosse revogada com uma explicação reveladora: "Não, meu amigo: afinal, eu fui, dentro da lógica de violência estabelecida, muito bem posto fora do lugar que há 30 anos conquistei em concurso de provas públicas, visto que sou adversário irredutível de todas as ditaduras e que nutro pela actual um sentimento de repulsa moral tão grande que me é impossível ter com ela ou com qualquer dos seus representantes o mais banal contacto."Intervir na política era para Santos Silva um imperativo moral e um dever cívico. Quando o golpe de 28 de Maio triunfou, acabando com o estertor da I República, regressou à medicina e ao ensino, mas, quando no horizonte se perfilaram os primeiros ataques às liberdades públicas, encontrava-se já ao lado da oposição militante - como na trágica revolta de 1927. Conspirou, apesar de negar vocação especial para o fazer, angariou fundos para campanhas e para militantes no exílio, mas foi o seu exemplo de coerência que mais marcou os que o conheceram. Como Manuel Mendes, que lhe teceu rasgados elogios, elogios que tiveram como resposta mais uma singela manifestação de simplicidade. Numa carta de Setembro de 1960, Santos Silva acusa-o de "dar relevo exagerado à fidelidade que tenho mantido pelos princípios". Porque, acrescenta, "eu não tenho feito nada que não seja o simples cumprimento dos meus deveres de cidadão". Para depois rematar: "E agora - onde pode levar a cegueira da amizade - quer fazer de mim um orientador da vida política nacional, quando eu fui quase tão somente um cidadão do Porto, um patuleia por vezes irrequieto, com fidelidade aos princípios que dominaram a minha mocidade."A mesma simplicidade e modéstia manifesta-se ainda na reposta a um convite assinado por personalidades destacadas da oposição - Fernando Piteira Santos, Fernando Lopes Graça, Manuel Mendes, Francisco Pulido Valente, entre outros- para se candidatar à Presidência da República em 1958. Disse que aceitaria apenas se "à volta do meu nome se congregar uma tal unanimidade que torne essa candidatura um imperativo cívico". Não houve unanimidade - oposicionistas influentes como António Sérgio preferiam alguém que tivesse apoiado o regime - e Eduardo Santos Silva revelar-se-ia incansável no apoio a Humberto Delgado, como o demonstra o entusiástico apoio que o "general sem medo" teve na sua primeira aparição no Porto.Símbolo da sua coerência e coragem é também a sua acção em favor defesa de presos políticos. O seu depoimento, em Abril de 1947, no julgamento de João Lopes Soares (pai de Mário Soares), é ilustrativo desta atitude. Depois de lhe sublinhar o percurso cívico, Santos Silva alega que "uma pessoa desta estatura moral tem, é claro, de enfileirar ao lado de todas as multidões que protestam contra a acção das ditaduras". E, perante um juiz que o acusava de estar a fazer um comício no tribunal, foi mais longe, dizendo que "a ditadura em Portugal resultou dum estado de confusão mental colectiva. É esse estado confusional que leva alguns a chamarem ordem ao que é, somente, o silêncio impressionante de vozes amordaçadas". Afrontando o tribunal, diria ainda que "para a polícia, quem aspira conspira".Santos Silva desiludiu-se com o fraco apoio que os apelos da oposição republicana tiveram junto dos portugueses nos anos 30 ou com a capacidade de resistência do regime aos ventos de mudança suscitados pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Mas jamais perdeu a esperança. Até ao fim da sua vida permaneceu convicto na vitória dos valores políticos pelos quais sempre se bateu. Numa carta a Mário Cal Brandão, escrita já na recta final da sua vida, afirmou que "é reconfortante, para os velhos republicanos como eu, relerem que as novas gerações resistiram com brio à acção deformadora da censura e do medo e, como legião avassaladora, abraçam com fervor os ideias da Democracia e da República". Ao longo de todo o livro, só se detecta um momento de fraqueza humana. Quando Jaime Cortesão, de partida para o exílio no Brasil, lhe mete uma "cunha" em favor do filho, então estudante da Faculdade de Medicina. "Temo seriamente que, sem uma boa dose de água benta, ele não possa mais uma vez vencer o 'Rubicon' anatómico. Poderia o meu amigo, por interposta pessoa, fazê-lo aspergir com a benevolência suficiente para suprir a sua escassa preocupação?"Coerente, sensível - apesar do seu coloquialismo - e reveladora das cumplicidades tecidas por homens como Jaime Cortesão, Raul Proença, Afonso Costa, Hernâni Cidade, Bernardino Machado, Manuel Mendes, Norton de Matos, António Sérgio, entre muitos outros, a correspondência de Santos Silva é assim reveladora de um homem tão desconhecido da maioria dos portugueses como excepcional. A sua personalidade, mostra-o esta obra, é um exemplo de um tempo e de uma consciência cívica que nos parecem hoje tão distantes como os amores dos romances de cavalaria. Na sua época, porém, soube ser compreendido, respeitado e amado. Quando foi a enterrar, o Porto e muitos amigos e conhecidos de outras partes do país fizeram-lhe uma derradeira homenagem. As lojas semicerraram as portas, a cidade ("em peso - ricos e pobres de várias gerações") compareceu e a multidão que interrompeu o trânsito nessa tarde chuvosa prestou assim a última homenagem ao "primeiro cidadão do Porto".

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