O republicano que mudou o comércio de Lisboa

A divisa de Francisco Grandela, "Sempre por bom caminho e segue!" aparece esculpida nos medalhões que decoravam as colunas entre portas dos Armazéns Grandela. Por cima, na fachada, dois ferreiros batiam as horas, marcadas por um relógio decorado com as figuras míticas da Verdade e do Comércio.

Com a inauguração, em 1907, da audaciosa obra de arquitectura que ocupava seis andares entre a Rua do Carmo e a Rua do Ouro, o homem que começou a sua vida como caixeiro, na Rua dos Fanqueiros, realizava um sonho, criar em Lisboa um espaço comercial semelhante aos grandes armazéns de Paris.

Mas este homem, que as enciclopédias dão como nascido em 23 de Julho de 1852 e que, segundo as investigações mais actualizadas, afinal nasceu em 1853 - Vasco Trancoso, um médico das Caldas da Rainha que se dedicou a estudar a vida de Francisco Grandela, cita a sua certidão de baptismo e o "Livro de Accentamentos da Família Grandella" -, ficou na história portuguesa da viragem do século XIX para o XX por outras razões: foi um filantropo, republicano, maçon e mulherengo. E, mesmo nesta última vertente, deixou obra, um clube, os "Makavenkos", que funcionava na cave do Cinema Condes.

"Foi um personagem de excessos", resume o historiador João Bonifácio Serra, investigador do Instituto de Ciências Sociais e um estudioso do período entre os finais do século XIX e os anos 30.

Enquanto comerciante, Francisco Grandela subiu na vida a pulso, de empregado de balcão, ainda adolescente, recém-chegado a Lisboa, vindo de Aveiras, concelho de Azambuja, onde nasceu, filho de um médico de proventos modestos.

Em 1879, com dinheiro emprestado, abriu a sua primeira loja, na Rua da Prata. Chamou-lhe "Fazendas Baratas" e, para conseguir vender o seu produto mais barato, ia directamente às fábricas, dispensando intermediários. Em dois anos, juntou dinheiro para pagar a dívida de 250 mil reis que contraíra para abrir o negócio, e tomou de trespasse outro estabelecimento, no Rossio, "A Loja do Povo".

Aqui, começou a pôr em prática técnicas de marketing inovadoras, por exemplo, vestindo o porteiro de vermelho e anunciando a loja nos jornais com textos humorísticos de página inteira que ele próprio escrevia. A clientela multiplicou-se e, em 1886, Grandela abre nova loja, esta na Rua do Ouro, "O Novo Mundo". Nessa época, já ele conhecia os grandes armazéns parisienses e sonhava abrir um em Lisboa. O sonho começou a tomar forma em 1891, num prédio ainda em obras, também na Rua do Ouro, onde instalou 40 secções onde se vendia uma enorme variedade de artigos, do mais barato ao mais caro. Pela primeira vez, surgia o nome de Armazéns Grandela.

O sucesso foi grande e o comerciante decidiu dedicar-se também à indústria do vestuário, abrindo em S. Domingos de Benfica as suas primeiras fábricas de produção de malhas, lanifícios, fiação de lã e algodão, luvas, perfumaria, móveis de ferro e outros artigos. Com as vendas por catálogo, outra inovação em Portugal, distribuía os seus artigos por todo o país, continental e insular, e respectivas colónias.

Com a expansão do negócio - já tinha 200 operários a trabalhar por sua conta - decidiu ampliar os armazéns, comprando um prédio na Rua do Carmo, que albergava os Armazéns Alcobia e o Margoteau dos Espelhos, prosperando enquanto os seus correligionários republicanos sofriam as perseguições da monarquia.

Estes armazéns, que ligavam com os da rua do Ouro, projectados pelo mesmo arquitecto dos Armazéns Printemps, de Paris, George Demay, com fachadas para as duas ruas, em estilo Arte Nova, eram, em 1907, os maiores armazéns da Península Ibérica, tinham mais de 70 secções e empregavam mais de 500 pessoas. Toda essa gente beneficiava das benesses decorrentes dos ideais republicanos de Francisco Grandela, tinham direito a descanso ao domingo e assistência médica e jurídica gratuita no local de trabalho.

"O comércio em Lisboa mudou a partir daí. Havia saldos, lançavam-se novas colecções sempre que a estação mudava, anunciadas por cartazes e anúncios ousados, conta-se que fez correr no Rossio cavalos pintados de azul", conta João Bonifácio Serra.

Em Benfica, Grandela manda edificar o Bairro Operário Grandela, onde os trabalhadores das fábricas de fiação e têxteis e empregados dos armazéns vivem e onde têm escolas para os filhos, uma creche, uma escola primária, lojas para se abastecerem e um local de convívio, a Academia de Instrução e Recreio.

A instrução era uma das obsessões deste republicano convicto. Na creche e na escola de Benfica, a arquitectura é de inspiração maçónica, com um frontão triangular, estrelas vermelhas de cinco pontas e, por baixo destas, os selos do Conselho da Ordem do Grande Oriente Lusitano. "Não era tudo filantropia, digamos que a sua política social era coadjuvante da política económica", afirma Bonifácio Serra.

Rebenta a I Guerra Mundial e Francisco Grandela, o humanista, recusa-se a vender mais caros os seus produtos, sempre à espera que o conflito terminasse em poucos meses. As dívidas acumulam-se e o comerciante adia os pagamentos, mas a normalização não chegou e, em 1916, viu-se obrigado a interromper a produção fabril e a recorrer à banca, para pagar, com juros, a reposição dos stocks. Decide então transformar os armazéns numa sociedade por quotas, denominada Grandela & Companhia, tomando como sócios os empregados mais antigos. Em 1921, pela primeira vez, os Armazéns Grandela fecha o ano com um saldo negativo

Solteiro, mas pai assumido de cinco filhos, de três mães, nomeia um único deles, Luís, como sócio, dando origem a uma querela judicial colocada pelos preteridos, que apaixonou a opinião pública e que ele veio a ganhar, já aos 70 anos. Doente com diabetes a partir de 1925, retira-se então para a Foz do Arelho, terminando os seus dias em Setembro de 1934 no palacete que ali começara a construir em 1898, quando sonhava fazer daquela praia uma estância turística à semelhança de Veneza, com canais e tudo.

Sugerir correcção
Comentar