A minha dívida a João Sá da Costa

1. A vida não acaba, apenas se transforma. Assim canta o prefácio da celebração católica da passagem para o encontro com a alegria de Deus.João Sá da Costa, um dos mais antigos e prestigiados editores portugueses, cumpriu a última etapa da sua viagem. Na passada quinta-feira, celebrei com Idalina, sua mulher, filhas, familiares e amigos, a Eucaristia da esperança, a virtude que não aceita dar à morte a última palavra.João Sá da Costa nasceu a 10 de Janeiro de 1924. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas. Ainda estudante, fez parte do MUD Juvenil como católico independente. Leccionou durante dois anos nos liceus de Vila Real e de Aljustrel.Proibido de ensinar pela polícia política de Salazar, foi convidado pelo pai, o editor Augusto Sá da Costa, a integrar os quadros da Livraria Sá da Costa Editora. procedeu à renovação do catálogo editorial, publicando a nova série de Clássicos Sá da Costa, obras de António Sérgio, Clássicos do Estudante, Cadernos de Iniciação Científica de Rómulo e Carvalho, entre muitas outras obras de pedagogia e cultura.Em 1983, com Idalina Sá da Costa, sua mulher e companheira de vida e trabalho durante 40 anos, fundou as Edições João Sá da Costa, com a linha editorial de sempre, dedicada à publicação de grandes obras da cultura portuguesa.2. Nesta rápida cronologia, saltei, propositadamente, a etapa da sua vida que provoca este apontamento.Em 1967, foi fundado o Instituto de Estudos Teológicos (ISET).Em 1975, foi encerrado. teve a existência curta e muito caluniada nos meios eclesiásticos, porque era uma escola de teologia em diálogo com as ciências humanas, uma teologia da experiência cristã no seio das contradições da experiência humana. Por fidelidade ao Concílio Vaticano II, não se podia pensar em preparar padres e missionários para intervir em Portugal e nos países africanos de língua oficial portuguesa sem investigar como tinha sido moldado o catolicismo português no séc. XX, que se revelava incapaz de ver o sentido espiritual, cultural e social do que estava a acontecer ao país.É certo que algumas alterações na hierarquia da Igreja a prepararam razoavelmente bem para a transição da ditadura para o regime democrático. Mário Soares deu uma grande ajuda.Mas na década de 60 - um período de grandes transformações do país, tempo de imigração e de guerra colonial - a Igreja, com décadas de triunfalismo católico, acusava um grande vazio espiritual. Eram sufocadas todas as alternativas para acolher novas experiências, novos grupos e enfrentar novos desafios.Donde vinha aquela incapacidade para ler os sinais do tempo, aquela cegueira diante da grande oportunidade para receber o espírito do Vaticano II antes que fosse demasiado tarde?Tornava-se evidente que era preciso questionar os caminhos do catolicismo português no séc. XX. Havia a suspeita de que as versões oficiais dessa história ocultavam outras histórias - não só a dos "vencidos do catolicismo", no sentido que lhe dá agora João Bénard da Costa, mas a história dos expressamente excluídos e dos propositadamente esquecidos.Fui incumbido de programar uma cadeira que ajudasse a colmatar essa lacuna no programa do ISET.3. Falei desse projecto ao arquitecto Nuno Teotónio Pereira e a Natália Duarte Silva, militantes prodigiosos na invenção concreta do futuro e com um passado de experiências de contraste.O Nuno Teotónio, além de muitos outros contactos que me facilitou, foi comigo ao escritório de João Sá da Costa, um dos primeiros membros da incomparável comunidade de base Metanoia dos anos 40 e 50. Nomeou-me os outros elementos com quem eu devia falar, a começar pelo Fernando Ferreira da Costa. mas foi no escritório do João, no Largo de Camões, que vi, pela primeira vez, desaguar um rio cristão, que vinha de muito longe e que eu desconhecia, muito diferente do percurso do CADC, do Centro Católico e da Acção Católica. Foi o começo de uma grande dívida a João Sá da Costa.Falei com vários membros do grupo Metanoia - cristãos comunitários", "missionários no interior da cristandade" -, que levavam à letra o espírito da primeira comunidade cristã descrita nos Actos dos Apóstolos (ACT, 4, 32-35). Mas eles não conseguem falar muito deles próprios e do seu espantoso itinerário desde a universidade até ao "comunismo" cristão nas faldas do Marão.Falam sempre dos outros: entusiasmam-se com o franciscano Manuel Alves Correia, sobrevivente da revista "A Voz de Santo António", condenada vergonhosamente por Roma, em 1910: do António Sérgio, da "Seara Nova", que lhes apresentou um padre cristão, o espiritano Joaquim Alves Correia, que Salazar deixou morrer no exílio e que fizera parte do movimento e do jornal "Era Nova", fundado em 1932. Tornou-se, sobretudo durante o exílio, uma das grandes referências da comunidade Metanoia, que publicou 24 cadernos de textos exemplares - "Páginas Cristãs" - que testemunham o caminho do espírito de Cristo na história.A última vez que falei com o João Sá da Costa, foi em Junho, no lançamento de mais um livro de textos que aqui deixo aos domingos.E combinámos uma longa conversa.

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