Em defesa das touradas

A primeira vez que vi uma tourada sem ser na televisão foi em Barrancos. Já lá vão mais de 30 anos. Não sei se em Barrancos ainda se apregoava então a chegada de um filme como "cine sonoro animado ao ar livre destapado", mas lembro-me duma terra em que se compravam bolachas em casa de contrabandistas, aguadeiros batiam às portas e em que, aos meus pedidos insistentes dum gelado, se atravessou debaixo dum calor infernal uma sucessão de ruas empedradas até chegarmos a casa duma senhora que me deu sumo de laranja congelado, a que chamava sorvete. Não havia nessa época gelados em Barrancos. Tal como não havia bomba de gasolina até há alguns anos. Tal como não há médico agora. Mas existiam umas extraordinárias festas, com uma procissão que nunca mais acabava, baile à noite e tourada à tarde. O que nunca vi foi sombra de reaccionarismo, violência ou qualquer outro dos problemas psicossociais atribuídos ao público das touradas em geral e ao povo de Barrancos em particular. É normalíssimo que não se goste de touradas, mas pretender justificar este gosto denegrindo moralmente quem gosta é que é um exercício inadmissível. Não se abre a boca para dizer mal das touradas sem que não se recorra às acusações de marialvismo, violência e, embora agora menos, atraso. A questão do marialvismo é de todas a mais abstrusa: o que é que as touradas têm a ver com a vida amorosa das pessoas? Onde é que está o marialvismo: nas mulheres a atirar flores? Nos forcados? Nas reviravoltas do capote? No facto de haver toureiros com vidas amorosas atribuladas? Bem, se o critério for esse, estão o que faremos com os futebolistas e os artistas de cinema? E o que dizer dos ciclistas que não recebem troféu algum, mesmo nas mais remotas serranias, sem terem umas lindas moçoilas cumprimentando-os pelos seus feitos? Passemos agora para a questão do atavismo reaccionário que, na opinião de alguns, as touradas representam. As touradas são tão reaccionárias quanto o futebol, tendo a extraordinária vantagem sobre este último de os seus empresários não viverem em promíscua relação com o poder, dos espectáculos taurinos não dependerem de subsídios e de a vida profissional e pessoal dos toureiros e forcados não ocupar os nossos noticiários.Acontece que carregamos há séculos com a sina de as elites portuguesas terem a maior pena de não terem nascido francesas ou inglesas. De Portugal gostam do sol, da literatura e agora também da comida, mas só agora, porque levaram anos a tentar convencer-nos que a sopa e o azeite eram outros inequívocos sinais do nosso atavismo. E as touradas são um desses acontecimentos que nos amarram a este Sul que gostavam de colocar ao norte. Assim está instituído que as touradas são coisa de monárquicos absolutistas, embora elas sejam, como Barrancos prova todos os anos, uma festa intrinsecamente popular. E pacífica. Veja-se o público de qualquer tourada e compare-se com o que acontece em qualquer concerto ou jogo do mais insignificante desporto e depois tirem-se as respectivas conclusões.Neste conflito sazonal que são as touradas, temos dois mundos frente a frente. E não são de modo algum o do progresso e da regressão. O que temos é um mundo em que o homem usa os animais no trabalho e nos seus rituais. E outro em que as pessoas compensam o artificialismo da sua vida humanizando os animais de companhia, supondo que a natureza é uma infinidade de "Tarecos", alimentados a latinhas. Neste último mundo, misto de Disney e Cartoon Network, os animais falam e são geralmente vegetarianos. A própria sensibilidade destas pessoas pelo sofrimento dos animais é ela mesma muito mediatizada, como percebi num jantar em que tive a infeliz ideia de pedir iscas à portuguesa. Ainda não tinha espetado o garfo nas ditas e ouço, vindo do meu lado, este comentário: "Eu sempre que vejo comer carne lembro-me de cadáveres." Ainda pensei em retorquir que vai uma grande diferença entre um cadáver e aquelas simples iscas, acompanhadas de batatas e salpicadas com salsa, mas eis que me caem os olhos no prato de quem assim anatemizava o meu gosto gastronómico e vejo uma belíssima posta de bacalhau, coberta de azeite e enfeitada com rodelas de cebola. Face à altura daquele lombo de bacalhau, tive a inspiração de responder que realmente não me parecia que aquele bacalhau fosse menos cadáver que o porco donde eram provenientes as minhas iscas. Palavra puxa palavra, tornou-se claro que era tudo uma questão de sangue. Os bacalhaus morrem por asfixia, lá longe em barcos gelados, e os porcos aqui, ao nosso lado, em matadouros. A morte não é para ver. Para não ficarem traumatizadas, as crianças não vão ver os parentes idosos hospitalizados, mas entretanto passam os dias exercitando a imaginação em jogos de computador em que matam (quando não torturam) das mais diversas formas supostos adversários. Os touros de morte impressionam, mas se ficarem nos curros a agonizar já não faz mal?Não sei se as touradas sobreviverão por muito tempo. Quero acreditar que sim. Que ainda é possível alguém vestir-se de gala para entrar numa arena e chamar lindo ao touro que, segundos depois, lhe pode dar uma cornada fatal. Quero acreditar até que se pode contestar e criticar as touradas sem denegrir quem gosta delas. Quero acreditar, mas algo me diz que cada vez há menos espaço para os touros num mundo em que se concebem galos sem penas e outros abencerragens transgénicos. Para poupar dinheiro e talvez também evitarmos o trauma de os depenarmos.

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