A revolução de Darwish, finalmente em português

Há os que constroem palácios e os que cavam sepulturasO "poeta nacional palestiniano" e um dos maiores escritores árabes contemporâneos, Mahmoud Darwish, foi finalmente traduzido em português. "O Jardim Adormecido" (selecção e tradução de Albano Martins, ed. Campo das Letras) é uma obra cuidada, com uma simples mas belíssima capa, incluindo poemas extraídos dos volumes "La Terre Nous Est Étroite et Autres Poèmes", "Plus Rares Sont les Roses" e "Poèmes Palestiniens". Só é pena que esta antologia não tenha incluído um dos poemas mais marcantes da obra de Darwish: "Identidade". Na versão francesa, traduzida pelo orientalista Olivier Carré, as palavras perduram vibrantes. São expressão de perda e grito de fúria, dirigidos para a necessidade de reconhecimento da luta palestiniana pela sobrevivência após a criação do Estado de Israel em 1948. Há uma forte ligação à herança familiar e às raízes da terra - porque não são os palestinianos que habitam a terra, é a terra que neles habita. "Identidade" é uma verdadeira ameaça de rebelião.Inscri!Je suis arabeLe número de ma carte: cinquante milleNombre d'enfants: huitEt le neuvième... arrivera après l'été!Et te voilà furieux!Inscri!Je suis arabeJe travaille à la carrière avec mes compangons de peineEt j'ai huit bambinsLeur galette de painLes vêtements, leur cahier d'écolierJe les tire des rochers...Oh! Je n'irai pas quémander l'aumône à ta porteJe ne me fais pas tout petit au porche de ton palaisEt te voilà furieux!Inscris!Je suis arabeSans nom de famille - je suis mon prénom"Patient infinement" dans un pays où tousVivent sur les baises de la ColéreMes racines...Avant la naissance du temps elles prirent piedAvant l'effusion de la duréeAvant le cyprès et l'olivier... avant l'éclosion de l'herbeMon père... est d'une famille de laboureurs N'a rien avec messieurs les notablesMon grand-pére était paysan - être Sans valeur - ni ascendence.Ma maison, une haute de gardien En troncs et en roseauxVoilà que je suis - cela te plaît-il? Sans nom de famille, je ne suis que mon prénom.Inscris! Je suis arabeMes cheveaux... couleur du charbonMes yeux... couleur de caféSignes particuliers: Sur la tête un kefiyyé avec son cordon bien serréEt ma paume est dure comme une Pierre... elle écorche celui qui la serreLa nourriture que je préfère c'est L'huile d'olive et le thymMon adresse: Je suis d'un village isolé... Où les rues n'ont plus de noms Et tous les hommes... à la carrière comme au champAiment bien le communisme Inscris! Je suis arabe Et te voilà furieux!Inscris Que je suis arabeQue tu as rafflé les vignes de mes pères Et la terre que je cultivais Moi et mes enfants ensemble Tu nous as tout pris hormis Pour la survie de mes petits-fils Les rochers que voiciMais votre gouvernement va les saisir aussi ... à ce que l'on dit! DONCInscris! En tête du premier feuillet Que je n'ai pas de haine pour les hommes Que je n'assaille personne mais queSi j'ai faim Je mange la chair de mon UsurpateurGare! Gare! Gare! A ma fureur!Em "O Jardim Adormecido", Darwish confessa: "Eu sou o que se designa como 'o poeta da Palestina' e requer-se de mim que fixe o meu lugar na língua, que proteja a minha realidade do mito e domine uma e outra, para ser ao mesmo tempo parte da História e testemunha do que ela me fez sofrer. É por isso que o meu direito a um futuro implica revolta contra o presente e defesa da legitimidade da minha existência no passado. A minha poesia está assim transformada em prova de existência ou de nada."Um dos poemas incluídos na tradução portuguesa chama-se "A Minha Mãe" e, com ele, Darwish reconhece que conseguiu, mesmo sem a isso aspirar, "ultrapassar as fronteiras do [meu] espaço familiar", fazendo com que os seus leitores encontrassem nele uma "voz pessoal e colectiva".Tenho saudades do pão de minha mãe,do café de minha mãe...das carícias de minha mãe...E a minha infância cresceu,dia após dia,e amo a vida, porque,se eu morresse,teria vergonha das lágrimas de minha mãe!Faz de mim, se eu um dia voltar,uma umbela para as tuas pálpebras.Cobre os meus ossos com essa ervabaptizada pelos teus pés inocentes.Prende-meCom uma mecha dos teus cabelos,um fio da orla do teu vestido...talvez um deus,se tocar o teu coração!Se eu voltar, mete-meacha, na tua lareira.E pendura-me,corda de roupa, no terraço da tua casa.Não me sinto segurosem a tua prece matinal.Envelheci. Traz as estrelas da infânciaa partilharei com os filhos das aveso caminho do regresso...ao ninho onde esperas!Num tempo em que a paz parecia possível, Yasser Arafat aproximou-se de Darwish e pediu-lhe que integrasse a sua administração. A recusa foi imediata. A ira apoderou-se do líder: "Que mal teve André Malraux ser ministro do governo de Charles de Gaulle?" Sem hesitar, Darwish respondeu: "Há pelo menos três diferenças: primeiro, a França não é a Cisjordânia e a Faixa de Gaza; segundo, o estatuto de Charles de Gaulle não é o de Yasser Arafat; e terceiro, Mahmoud Darwish não é André Malraux. Poderá argumentar que estas são pequenas diferenças, mas mesmo que um dia o Estado da Palestina se torne tão grande como a França, que Yasser Arafat se torne num Charles de Gaulle e que eu atinja o estatuto de Malraux, prefiro ser Jean-Paul Sartre!"Darwish nunca escondeu o desacordo com os Acordos de Oslo que criaram a Autoridade Palestiniana. "Eram muito arriscados", disse, justificando a decisão de abandonar o Comité Executivo da OLP em 13 de Setembro de 1993. "O meu papel [no organismo ao qual pertencia desde 1987] era o de um símbolo. Eu estava ali para exercer uma influência moderada quando havia tensões e ajudar a reconciliar diferenças. Nunca fui um homem de política. Sou um poeta com uma peculiar perspectiva da realidade."Darwish, "o poeta", já publicou 14 volumes de poesia, o primeiro dos quais, "Olive Leaves", foi editado em 1964. Ganhou vários prémios internacionais e chegou a ser mencionado para o Nobel da Literatura. A sua vida é um livro aberto.Nasceu na aldeia de Al-Birwe, na Galileia, em 13 de Março de 1942. Em 1948, quando o Estado de Israel foi criado e, perante o avanço das tropas judaicas, a família fugiu para o Líbano. Regressou um ano depois, tarde de mais para ser incluído num recenseamento entretanto realizado pelas novas autoridades. A sua aldeia já não existia. Foi apagada do mapa como muitas outras localidades árabes, e ele foi residir para Deir al-Assad, também na Galileia.Sem bilhete de identidade, viveu escondido durante muito tempo até encontrar um estratagema que o retirasse da posição incómoda de "ausente-presente" - como são classificados pessoas e povoações não registadas por Israel. Convenceu o Governo de que não era "um infiltrado" e que não se recenseara porque estivera com beduínos no deserto. Tornou-se "palestiniano de cidadania israelita". Aos 13 anos, Darwish já revelava enorme talento para a poesia e cedo aprendeu os problemas que ela lhe poderia causar. Um dia, na escola de Deir al-Assad, o professor convidou-o a participar nas festividades do aniversário do Estado de Israel. "Lá fiquei eu em frente do microfone, pela primeira vez na vida, lendo um poema que era o grito de um rapaz árabe para um rapaz judeu. Não me lembro do poema, mas recordo-me da ideia: 'Tu podes brincar quando te apetece, tu tens brinquedos, mas eu não. Tu tens uma casa e eu não. Tu tens celebrações e eu não. Por que não podemos brincar juntos?'"No dia seguinte, Darwish foi chamado ao governador militar. "Chorei amargamente, porque ele disse-me que, se eu não deixasse de escrever aqueles poemas, o meu pai ficaria desempregado. Não podia entender o motivo de tanta perturbação. Foi o primeiro judeu com quem falei. O governador militar tornou-se o símbolo do mal nas relações entre os dois povos [israelita e palestiniano]."Meses depois, prossegue Darwish em "Victims of a Map", quando foi transferido para outra escola, o destino quis que encontrasse uma professora judia. "Era como uma mãe e salvou-me do fogo da desconfiança. Ensinou-me a ler o Velho Testamento como uma obra literária. Também me ensinou a apreciar a poesia de Bialik, mais pela sua força poética do que pela mensagem política. Nunca tentou impor-nos a história oficial [israelita] que distorcia e desacreditava a nossa herança cultural [palestiniana]. Ela demoliu os muros erguidos pelo governador militar."Darwish haveria de trabalhar com outros judeus e árabes no Rakah, o Partido Comunista de Israel, mas a sua acção política levou-o várias vezes à prisão. Em 1973, em "Journal of an Ordinary Grief", descreve assim a sua situação:"Quer viajar para a Grécia? Peça um passaporte, mas vai descobrir que não é cidadão porque o seu pai ou algum dos seus familiares fugiu consigo durante a guerra palestiniana. Você era uma criança. E descobrirá que muitos árabes que deixaram o seu país nesse período perderam o direito à cidadania.Você desespera por um passaporte e pede um salvo-conduto. Descobre que não é um residente de Israel porque não tem certificado de residência. Você pensa que é uma brincadeira e apressa-se a contar a um amigo advogado: 'Aqui, eu não sou um cidadão, e não sou um residente. Então onde estou e quem sou eu?' Ficará surpreendido quando descobrir que a lei está do seu lado, e terá de provar que existe. Pergunta ao Ministério do Interior: 'Estou aqui ou estou ausente? Dêem-me um perito em Filosofia para que eu possa provar que existo.' Então concluirá que, filosoficamente, você existe mas que, legalmente, você não existe."Em 1971, cansado deste paradoxos, Darwish partiu para o Cairo onde trabalhou para o jornal egípcio "Al-Ahram". Em 1973, aderiu à OLP e pouco tempo depois já era o director do Centro de Estudos Palestinianos em Beirute, onde consolidou a fama de "poeta da revolução". Após a invasão israelita do Líbano em 1982, repartiu o seu tempo entre Tunes e Paris, onde era co-director da revista literária palestiniana "Al-Karmel". Quando Arafat se instalou em Gaza, em 1994, Darwish foi viver para Ramallah (Cisjordânia). Antes de partir escreveu:"Take care of yourself Tunisia!Tomorrow we will meet in the land of your sister, Palestine.Have we forgotten something we've left behind?Yes, a longing heart and the best part of us.We have left behind martyrs we now commend to your care."Na Palestina, Darwish tem sido um crítico silencioso de Arafat. Os Acordos de Oslo representavam, para o poeta, o enterro de um passado de resistência que ele imortalizou nos seus versos, a obrigação de viver num permanente estado de amnésia. Recusou aceitar essa condição, mesmo depois de os israelitas terem introduzido a sua poesia - sempre em busca da identidade - em alguns manuais escolares.

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