"Os Troianos" erguem-se de novo

O ciclo Berlioz de Colin Davis, realizado há 30 anos, foi um celebrado empreendimento discográfico. O maestro britânico continuou entretanto não só a dirigir em concerto, como por vezes também a gravar obras do compositor francês. E um novo ciclo, gravado em concertos em Londres, traz mesmo uma segunda gravação sua de "Os Troianos"

Em Dezembro de 1993, Colin Davis dirigiu "Os Troianos" de Berlioz, em Londres, no Barbican Center, em versão de concerto. Foi uma experiência exaltante e, no entusiasmo, exprimi então a expectativa de que o concerto não ficasse sem consequências; era-nos lícito esperar que a continuada frequência por Davis de um repertório em que era reconhecidamente uma referência incontornável - e, pormenor não despiciendo, o facto de entretanto terem surgido suficientes cantores já mais familiarizados com Berlioz - desse origem a uma nova gravação da genial ópera. A única integral então existente era aquela, celebérrima, que o mesmo Colin Davis dirigira em 1969, na sequência das representações na Royal Opera House. Sete anos exactos passados, de novo com a Sinfónica de Londres e de novo no Barbican Center, Davis voltou a dirigir a ópera por ele bem-amada, e desta vez há mesmo disco.As circunstâncias em que o CD chega exigem no entanto uma explicação, várias mesmo. Em Dezembro de 1993, e por mais exaltante que tivesse sido a experiência, uma subsequente gravação dificilmente seria sequer de considerar como projecto, dado o facto de já então estar registada (embora ainda não editada) a que seria efectivamente a segunda integral, dirigida por Charles Dutoit, na Decca, uma editora do mesmo grupo Polygram (hoje Universal) em que se integra a Philips, com a qual Davis tinha longa associação. E, de resto, ainda nessa mesma altura, estava também já gravada, sob a direcção de Davis, mas com a Filarmónica de Viena, uma outra obra de Berlioz, "Romeu e Julieta", que só viria a ser editada em 1997. Para além destas possíveis peripécias de marcas e "marketing", os sentimentos pessoais de Colin Davis impeliram-no a voltar a dirigir a Sinfónica de Londres num ciclo, "The Berlioz Odissey", antecipado em relação ao bicentenário do nascimento do compositor, a ocorrer em 2003 - Davis receou que um tal esforço já não lhe fosse possível no próximo ano. E, se desta vez há mesmo disco, de "Os Troianos" como de "Béatrice et Bénédict", "A Danação de Fausto", "Romeu e Julieta" e a Sinfonia Fantástica, eles são editados pela própria London Symphony Orchestra. É um fenómeno muito recente mas importante, este de as orquestras se fazerem elas mesmas editoras. Só que as gravações que até agora têm sido disponibilizadas (e que em geral podem adquirir-se nos próprios "sites" dessas orquestra, como a de Boston, a Filarmónica de Nova Iorque ou a do Concertgebow de Amesterdão) são provenientes dos arquivos e o seu interesse básico é o de retratarem o historial da formação e/ou as associações que foram estabelecendo com maestros-directores. Não deixa de ser curioso que a LSO, que é a orquestra sinfónica que terá mais discos gravados (até porque é possível contratá-la só para umas sessões de gravação, como sucede frequentemente com maestros ou grupos da chamada "música ligeira"), tenha considerado aventurar-se na comercialização directa de registos. Lançados ainda em finais do ano passado na Grã-Bretanha, têm agora a difusão internacional assegurada com distribuição da Harmonia Mundi - e, sempre sob a batuta de Davis, outros CD dedicados a obras de Dvorak ou Elgar se sucederam entretanto. Enquanto intérprete de Berlioz, Colin Davis tem lugar cativo como o maestro que impôs em disco a totalidade da obra do compositor francês, óperas incluídas. Passados 30 anos, o estado dos nossos conhecimentos evoluiu fortemente pelo menos num aspecto: com a Orchestre Revolutionnaire et Romantique, John Eliot Gardiner deu-nos uma outra e capital noção das prodigiosas cores de um autor a esse título verdadeiro fundador da "orquestra sinfónica", e não há ainda outro exemplo, como este, de um compositor romântico tão "revestido" por uma formação com instrumentos de época. Por outro lado, o britânico Davis, como antes dele Thomas Beecham, nunca deixou de manter uma certa concepção "elegante" da música de Berlioz, longe por exemplo dos imprevisíveis humores e ardores de um Charles Munch. Hoje reconsiderado num panorama global da interpretação berlioziana, Davis é um paradigma de um equilíbrio procurado entre a inspiração clássica e o imaginário romântico. Esta série de discos é disso plena confirmação, e a esse nível não trazem novidade, podendo-se dizer que a prossecução das mesmas opções interpretativas, e muitas vezes até nos tempos, é que quase acaba por surpreender, de tão patentemente reiteradas. É espantoso constatar, no caso de "Romeu e Julieta", como as constantes interpretativas básicas se mantêm em três gravações oficiais, ao longo de 30 anos!Daí a um discurso que postule a relativa "inutilidade" discográfica destes novos registos vai um passo - mas absurdo de se transpor! Basta atentar à "exaltação do instante" que estas gravações ao vivo transportam, mas também há que considerar as distinções individuais trazidas pelos solistas. Seguramente que no "Romeu e Julieta" e sobretudo na "Danação de Fausto" anteriores registos tinham elencos mais distintos, ainda que a primeira daquelas obras não deixe outra vez de ser objecto de uma admirável interpretação. O caso mais problemático é, no entanto, o de "Béatrice et Bénédict", obra que também ela conhece a sua terceira gravação por Davis.Como "opéra-comique" esta obra, baseado em "Much Ado about Nothing" de Shapeskeare, tem números musicais e diálogos falados. A apresentação em versão de concerto é-lhe eventualmente pouco favorável, pois essa particular teatralidade é sempre amputada. E, contudo, a desmentir o axioma, a primeira gravação de Davis, nos anos 60, também sem diálogos, é uma das mais belas da obra. O que falha é o estilo de conjunto do elenco - os dois muito belos momentos, os únicos, são aqueles dois sempre passíveis de serem destacados como números autónomos, o Nocturno com duas vozes solistas (e que, em si mesmo, se liga directamente às "mélodies" do compositor) e o coro que precede a marcha nupcial.Com todas as possíveis limitações, se considerados cada um dos solistas, "Os Troianos" superam esses desacertos de elenco que se verificam na outra ópera. Em 1969, Davis reunia um trio protagonista de inclinações wagnerianas patentes na Cassandra de Berit Lindholm e no Eneias de Jon Vickers, ou advinháveis na Dido de Josephine Veasey. Vickers ou Veasey instituíram-se mesmo como intérpretes que fortemente moldaram a percepção das personagens. Outro tenor canadiano, Ben Heppner, volta a confrontar-se, e desta vez de modo mesmo inevitável, com a memória de Vickers. A sua interpretação, como aliás a de Petra Lang, Cassandra, ou Michelle de Young, Dido, é aproximativa, ou seja, não é difícil de descortinar que lhes falta o convívio com as personagens que provavelmente só a prática em palco confere. Apesar de guiados pela mestria e longo conhecimento de Davis, ainda lhes escapa muito dessa declamação da tragédia francesa, que é o patente legado de Gluck em Berlioz. Todavia, se ouvidos subsequentemente um e outro, também se constata que Heppner se resgata da dilaceração expressiva do modelo de Vickers, que irresistivelmente faz pensar no alucinado Tristão que aquele genialmente foi, mas que de modo algum é um exemplo modelarmente berlioziano. Sim, estes "Troianos" fizeram-se mesmo esperar!

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