Ricardo Pais, o português intranquilo

É difícil acreditar que está cansado, como diz. Anuncia o cansaço com a mesma vitalidade com que, ao fim de uns minutos, revela "repugnância" por tudo o que não é novo e fresco e original em palco. Embora tenha acabado de pôr em cena um Hamlet, confessa, "convencional". Talvez por isso já sonhe fazer outro, diferente. Ricardo Pais, 56 anos, fala de forma torrencial do Teatro, de um percurso que assume "como uma praga", dos afectos, das irritações. Se pudesse viver dos rendimentos, garante, não faria mais nada na vida. Mas é a inquietação que o move.

Encontramo-nos primeiro na plateia do D. Maria, depois no hall do hotel onde tem lugar cativo cada vez que se desloca à capital e, por fim, numa longa conversa telefónica, dando um último retoque à sintaxe e desbastando as redundâncias de horas de conversa. Ricardo Pais é tão minucioso na entrevista como no trabalho que põe em palco. Atormenta-se pela dúvida em relação a uma data. Inquieta-se com um nome esquecido. Luta, demoradamente, com uma palavra ou uma frase imperfeita. É por isso talvez que, confessa, odeia escrever. "Se me dissessem que não teria de escrever nem mais uma linha até ao fim da minha vida, era um homem feliz". Diz que só gosta de fazer aquilo que sente que pode fazer muito bem. Embora lamente não poder, aos 56 anos, mudar de vida. Assume a fragilidade e as inseguranças em relação ao trabalho que faz como se estivesse agora a começar. Fala da passagem pela direcção do Teatro Nacional D. Maria II como um acidente de percurso, "tristíssimo", e do papel que desempenhou à frente do Teatro Nacional de S. João, no Porto, como o período mais importante e fecundo de uma carreira agora, de novo, sem rede. Apesar do triunfo com um "Hamlet" esgotado do primeiro ao último dia. Porque, diz repetidamente, "o sucesso não é grande coisa".

PÚBLICA - Tem ideia do que poderia ser hoje a sua vida se não se tivesse dedicado ao Teatro?

Ricardo Pais - Não tenho a mais pequena ideia. Poderia ser cozinheiro, como fui, ou guia turístico. Se calhar ganhava o suficiente para ser um óptimo espectador e teria muito mais tempo para ler. Mais tempo para a família. Mas não consigo imaginar, propriamente, o que é que poderia ter feito assim de tão importante.

P. Essa ideia de fazer algo de importante é uma ideia importante para si?

R. Aqui há uns anos, um amigo meu italiano, a quem perguntei o que é que queria fazer na vida, respondeu-me: quero ser célebre.

P. E também foi isso que o Ricardo Pais quis?

R. Acho que sim. Acho que - consciente ou inconscientemente - sim, eu queria ser conhecido.

P. Como é que se relaciona com a fama?

R. Cada vez pior. Esta fama de consumo - a fama pop - é assustadora. Esta espécie de efemeridade - de ilusão de fama, no fundo - de reconhecimento por dois dias, descartável, que os media fabricam (nomeadamente a televisão) é lamentável.

P. Para um homem de uma arte do efémero a recusa da efemeridade parece contraditória.

R. Claro que quando a gente fala num desejo de fama está falar em imortalizar-se. Não se está a pensar, propriamente, em ser reconhecido na rua no dia seguinte ou em andar de amante célebre para amante célebre. A fama de que falo é uma forma de prolongar o amor que se provoca nos outros, prolongá-lo para além dos limites da nossa própria vida.

P. Não sabendo o que estaria a fazer hoje se não fizesse o que faz, assume o teatro como uma espécie de inevitabilidade no seu percurso?

R. Assumo-o quase como uma praga.

P. É um fatalista?

R. Não, de todo. Digo isto humoristicamente e com sorrisos entre parêntesis como se costuma escrever nas entrevistas. Agora, desespera-me um pouco pensar que aquilo que eu sei mesmo fazer é isto e que já não estou a tempo de fazer outra coisa tão bem como isto. Porque se estivesse garanto-lhe que mudava.

P. Proponho-lhe então um flash-back. Em que momento da sua vida é que o Teatro se tornou, nela, inevitável e central?

R. Foi algures no momento em que estava a trabalhar com o argentino Victor Garcia, em Coimbra, no CITAC. Aí, percebi que havia uma dimensão genuinamente artística, não lúdica, nem amadoristicamente doutrinária ou recreativa no Teatro. Com ele, descobri que havia um universo orgânico, complexíssimo, por detrás da irresponsabilidade de se assumir um espectáculo em cena.

P. Antes disso, no entanto, já tinha pisado o palco. A sua estreia a sério foi no Liceu de Viseu a representar "O Meu Caso", de José Régio...

R. ...dirigido pelo José Alberto Osório Mateus, que veio a ser um personagem determinante. Eu tinha dezasseis anos, nessa altura.

P. Ainda se lembra do papel que fazia?

R. Lembro. Fazia o papel que o Luís Miguel Cintra faz no filme do Oliveira. Fazia o escritor, O Autor. Lembro-me de ter ido numa excursão do liceu ao Teatro Rivoli, no Porto, e de aí ter sido apresentado ao próprio Régio que estava presente. O Osório Mateus disse-lhe: "este é O Autor". E o Régio respondeu: "não, o autor sou eu". Nunca mais me esqueci disto.

P. Voltando ao liceu de Viseu - onde se estreou como actor - como é que foi lá parar? Nasceu no distrito de Leiria...

R. ..e vivi em Maceira-Liz até aos onze anos. Depois, os meus pais vieram para Lisboa e eu estive, sucessivamente, num colégio interno em Vila Nova de Ourém, depois na Marinha Grande, até que o meu pai se separou da minha mãe e foi viver para Viseu, que era a terra dele. Nessa altura, aos quinze anos fui viver com ele.

P. Essas andanças de adolescência traumatizaram-no?

R. Sim, é terrível separar um filho dos pais aos onze anos. Foi muito violento. Custou-me muito viver tudo isso. Ainda hoje me lembro dessa dor. Depois, ao ir viver com o meu pai, encontrei uma diferença abissal nos hábitos de vida. Passei de um sítio que era uma espécie de paraíso industrial na vida portuguesa, onde havia tudo, para uma sociedade rural, paupérrima, miserável. Lembro-me que uma das coisas que mais me traumatizou foi a história de uma mãe que não tinha cinco tostões para comprar algodão iodado para uma criança que estava a morrer e lembro-me da nossa angústia com isto. O meu pai era farmacêutico e tinha uma lá farmácia que já era do meu avô. Havia ali, portanto, raízes muito fortes. Mas eu detestei Viseu.

P. Não descansou enquanto não saiu de lá e foi para Coimbra estudar Direito. Já ia com o vício do Teatro, depois dessa estreia no liceu de Viseu?

R. Penso que ele, de algum maneira, esteve sempre lá.

P. Já agora, o palco vicia?

R. A mim, não. Cansa-me imenso. De cada vez que acabo apetece-me não voltar mais.

P. O Teatro foi para si um caso de família praticamente desde que nasceu. Tem memória do seu pai, actor amador, em palco ainda em Maceira-Liz?

R. Tenho. Lembro-me dele a fazer a peça "As Duas Causas", com o cabelo empoado para parecer mais velho.

P. E tem alguma memória de quando o seu pai o pôs a si em palco logo a partir dos quatro/cinco anos?

R. Sim, mas não era propriamente em Teatro. Cantava umas cantigas e lia poesia. Entrava na parte chamada do "Acto de Variedades", que é uma coisa de que eu tenho uma nostalgia imensa. Eram aqueles espectáculos em que havia uma peça curta e na segunda parte vinham as variedades.

P. Acha que essa nostalgia tem alguma coisa a ver com o impulso que o levou, muito mais tarde, a fazer aquela série de espectáculos musico-teatrais?

R. Penso, curiosamente, que tem tudo a ver com essa nostalgia. Com um certo fascínio por aquela coisa fascistóide dos serões para trabalhadores. Tem tudo a ver com isso, tem, sim senhor. Há aliás um espectáculo meu, e não só meu, que se chama "Tanza-Variedades".

P. Com esse background teatral desde criança, quando chegou a Coimbra, à Universidade, já só pensava no Teatro ou ia com a intenção genuína de se tornar doutor em Direito?

R. Naquele tempo havia muito menos gente que tinha acesso ao ensino universitário e, portanto, aquilo levava-se muito menos a sério. Não havia a competitividade que há hoje. Estudar em Coimbra era uma espécie de estado de espírito.

P. Deduzo que não foi o protótipo do estudante aplicado.

R. Não, fui um estudante catastrófico, mesmo. E lamentei-o imenso. Devo dizer que isso diminuiu tremendamente a minha auto-estima. Eu, realmente, não era capaz de estudar Direito, pelo menos ensinado daquela maneira.

P. O Direito tinha sido uma imposição familiar?

R. Não, ninguém me impôs nada. Escolhi-o porque achei que o lado forense do Direito tinha muito a ver com o Teatro. Eu era considerado um miúdo com uma grande capacidade de argumentação. Não me apetecia ser professor de liceu mas, na realidade, o que devia ter estudado era Línguas e Literaturas que era aquilo para que tinha algum talento.

P. Ainda tem alguma daquela nostalgia coimbrã de que falam tantos dos que por lá passaram?

R. Não. Se há uma cidade que eu detesto é Coimbra.

P. Está a criar inimigos...

R. Não, até tenho em Coimbra familiares e óptimos amigos.

P. Essa sua frontalidade, às vezes quase brutal, deve arranjar-lhe uns conflitos, de vez em quando. Gosta de situações de confronto?

R. Não muito. Gosto de discutir as coisas, de as levar por diante, mas sou incapaz de trabalhar em conflito, por exemplo. Tenho de trabalhar em alguma harmonia com as pessoas. Essa harmonia, no entanto, é constituída de convicções, senão não vale a pena. E aquilo que eu expresso nas minhas boutades um bocadinho vibrantes - se calhar, excessivamente - tem que ver com a necessidade que há de esclarecer determinadas coisas. Acho que se vive, em Portugal, numa água tépida insuportável.

P. Não deixa de ser irónico que tenha sido Coimbra, paradoxalmente, o palco da sua descoberta do Teatro "numa dimensão genuinamente artística", como dizia há pouco...

R. E foi em Coimbra que eu ganhei uma consciência mais aguda da extensão imensa da repressão fascista. Foi em Coimbra, também, que comecei a aperceber-me de alguns dos principais defeitos da ortodoxia de esquerda portuguesa. Foi a partir de lá, portanto, que eu percebi que tinha de sair do país para ser outra coisa.

P. Quando decide ir para Londres a sua intenção já era a de ir estudar Teatro ou era, pura e simplesmente, uma forma de escapar a Coimbra, ao país e à tropa?

R. À tropa, em primeiro lugar, claro. Era mais que escapar, era uma rejeição. E optei por Londres - e não por Paris ou Bruxelas - porque tive a sensação que, apesar de tudo, era em Londres que a comunidade portuguesa estava mais dispersa. E eu não tinha vontade nenhuma de voltar à vida de café. Estava farto disso até aos olhos: dos "Vá-Vás" e dos "Mandarins" da nossa praça. Queria mesmo ir para outra coisa. Mas respondendo á sua pergunta: o intuito, o grande desejo ao ir para Londres - subliminarmente, pelo menos - era o de estudar Teatro.

P. Antes ainda de ir para Londres tinha trocado, durante um ano, Coimbra por Lisboa. Mas continuou em Direito. Porque é que se mudou?

R. Acho que prescrevi a uma disciplina, mas já não me lembro bem. Foi um ano em que se exilou para Lisboa uma quantidade de gente: o Manuel Alberto Valente, o Adriano Correia de Oliveira, eu próprio. Viemos todos de Direito. Vínhamos todos corridos das mesmas cadeiras: ou de Direito Corporativo ou de Administrativo.

P. Foi apanhar, como professor, o Marcello Caetano.

R. Sim, mas em Lisboa já era aluno voluntário de maneira que ia muito pouco à Faculdade. Só tinha que ir o mínimo indispensável.

P. Mas chegou a ir a aulas do Marcello?

R. Fui a duas ou três. Como era voluntário, não estava a viver em Lisboa. Estava a fazer pela vida, a trabalhar como recepcionista no Hotel da Ericeira.

P. A memória dessas duas ou três aulas serviu-lhe de alguma coisa para compor a personagem de Marcello Caetano no filme da Maria de Medeiros, "Capitães de Abril"?

R. Serviu muito. Havia nele uma tranquilidade fria de que me lembro muitíssimo bem. E havia outra coisa que, no filme, não está tão bem: ele era um homem elegantíssimo, sempre muito aggiornato, quase na moda, sem ser nada flamboyant. Muito elegante.

P. E isso falhou no filme?

R. Bem, ele estava num momento de crise, não interessa que estivesse muito bem vestido mas acho que a roupa não foi escolhida à altura da qualidade do guarda-roupa do Marcello.

P. Se é um traço de carácter seu: a preocupação minuciosa com o mais pequeno detalhe?

R. Sim, já se tem dito que sou muito obsessivo com os pormenores. Tenho uma fixação em não deixar passar um qualquer detalhe que possa descontrolar a noção de tempo e espaço no espectáculo. Julgo que ganhei muita dessa minúcia a trabalhar com o António Lagarto que, ele sim, é doentio - como cenógrafo e figurinista - no acabamento, no detalhe e no mais pequeno pormenor.

P. E a sua ida para Londres foi minuciosamente preparada? Partiu com dinheiro no bolso ou foi à aventura?

R. O meu pai tinha, na caixa registadora da farmácia, quando eu saí, quarenta escudos que me quis dar e que eu não aceitei. Levei dinheiro emprestado de uns amigos da Nazaré. Dois contos e quinhentos que mais tarde paguei honradamente. Não tinha dinheiro absolutamente nenhum. Aliás, nunca tive dinheiro nenhum. O meu pai não vivia nada bem apesar de ter um negócio que mais tarde veio a ser próspero. Pedi, por duas vezes, já em Londres, uma bolsa à Fundação Gulbenkian que nunca consegui. De uma das vezes deram à minha mãe, aqui em Lisboa, a justificação de que eu era um valor não recapitalizável porque, em princípio, não ia regressar ao país.

P. Foi, portanto, para Londres quase de bolsos vazios e sem rede. Isso corresponde a um traço de carácter seu: tem uma atitude do tipo ou-vai-ou-racha quando se lhe mete um projecto na cabeça?

R. Não diria tanto. Fui suficientemente persistente, obstinado, até uma determinada altura da vida. Hoje acho que as opções estão todas tomadas e sou bastante conformista. Tomara que aquilo que eu tenho rendesse o suficiente para já não ter que fazer nada, nem ter que me preocupar com nada.

P. Quando partiu para Londres já se encarava a si próprio como actor?

R. Só me encarava a mim próprio como actor. Era o que eu queria ser. Ainda hoje tenho pena de não ter sido.

P. Queria ser actor mas acabou a fazer um curso superior de encenação. Como é que isso aconteceu?

R. Fui induzido a seguir o curso de encenador porque, na minha escola, entenderam que provavelmente isso seria melhor.

P. Com que argumentos é que lhe disseram, no Drama Centre, que estava mais calhado para encenador do que para actor?

R. Não houve argumento nenhum.

P. E como é que encarou isso?

R. Depois de tudo o que já tinha visto e conhecido - já estava há um ano e meio em Londres - percebia que aquela era a escola onde eu queria estudar. E percebi que era melhor estudar aquilo que eles me propunham do que não ficar lá a estudar.

P. Fez nessa altura alguma instrospecção sobre o que é que quereria dizer esse conselho que lhe deram?

R. Não. Aceitei, pura e simplesmente. E segui.

P. Em Portugal, esse era o tempo da chamada Primavera marcelista. Não podia regressar porque era refractário. Como é que acompanhava a situação portuguesa?

R. A partir do momento em que comecei a estudar teatro entrei numa espécie de limbo em que, realmente, não pertencia a parte nenhuma.

P. Tornou-se um apátrida?

R. Entrei numa espécie de limbo introspectivo em que trabalhava sobre mim próprio, estudava-me a mim próprio. Era como se me tivesse retirado para um convento budista e tivesse abraçado uma religião. A territorialidade, a contingência política, tudo isso deixou de me interessar. Estava atento, é certo, lia o Expresso desde que saiu - até o assinava - tínhamos a Liga do Ensino e da Cultura Portuguesa em Londres, mas isso já não moldava a minha vida. Nem sequer a noção de exílio.

P. Ao mesmo tempo que estudava, trabalhava para sobreviver e tornou-se mesmo guia turístico. Qual era a sua especialidade: os museus, as visitas de autocarro...?

R. Era tudo. Aquilo era uma coisa completa. Ainda hoje sou guia registado no London Tourist Board em cinco línguas. Tinha de fazer tudo, desde a National Gallery à Abadia de Canterbury.

P. Quando vai a Londres ainda conhece os recantos todos?

R. Aqui há tempos aconteceu-me uma coisa muito engraçada. Apanhei um daqueles fantásticos motoristas de táxi londrinos que tentava guiar-nos, a mim e à minha mulher, enquanto nos levava para a Tate Modern. A certa altura, passamos pela Somerset House, ele disse uma asneira qualquer e eu corrigi-o. Ele ficou pasmado e eu tive de lhe dizer: desculpe, mas é que eu já fui guia de Londres durante muitos anos. Ficou ainda mais aflito, pediu imensa desculpa mas eu insisti para que ele continuasse a dizer-nos tudo. E ele continuou.

P. Depois de ter passado pelo Drama Center esteve no início de um grupo de teatro, o Theatre 84...

R. Estive desde o primeiro momento mas, formalmente, não fui co-fundador.

P. Porque é que o grupo se chamava Theatre 84, em 1971?

R. Porque estávamos no número 84 de uma rua que já não me lembro qual era, ali muito perto de Oxford Circus.

P. Tinha feito uma peça de Arrabal na prova de final de curso e fez, com esse grupo, a sua primeira encenação, já formado, com uma peça de Garcia Lorca...

R. Foi "O Amor de D. Perlimplim com Beliza em seu jardim" e foi muito importante. Tinha começado a perceber, ainda na escola, quando fizemos o primeiro exercício específico de encenação no primeiro ano, que eles tinham acertado em cheio ao pensar que eu poderia pegar num texto e concebê-lo para a cena. Esses primeiros trabalhos - tanto o Arrabal, no final do curso, como o Lorca, no Theatre 84 - deram-me a convicção não só que eu realmente poderia encenar como que havia qualquer coisa de particular e de pessoal - quanto mais não seja um toque de estilo - que iria marcar o meu trabalho para sempre.

P. Estava, nesses primeiros tempos, integrado num grupo o que veio a ser, daí em diante, uma experiência rara ao longo da sua carreira, até hoje. Porquê?

R. Acho que tudo isso foi mais circunstancial do que outra coisa. Na realidade, quando me era possível entrar em grupos - quando, por exemplo, trabalhei com Os Cómicos, nos anos setenta - não estava em condições pessoais de aderir a grupo nenhum. A minha vontade era flutuar de coisa para coisa, não me comprometer muito com nada em especial. Digamos que o meu grau de empenho em relação a uma obra permanente e contínua só é activado em circunstâncias muito particulares. Não é um traço de carácter é algo que eu posso activar em determinadas circunstâncias. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Teatro de São João.

P. Esse deve ter sido o seu record de permanência numa instituição.

R. É, claramente. Muitas das coisas que eu tinha defendido ao longo da minha vida para o Teatro eram possíveis ali. A ideia de que o Teatro não tem de funcionar necessariamente em gueto, a ideia de que é indispensável retomar as práticas, as tradições, os misteres do Teatro a sério, do Teatro das salas. Era muito importante o conhecimento do teatros porque uma sala - e principalmente uma sala com uma carga histórica como a do Teatro de São João - tem por obrigação saber abrir as suas portas, saber abrir-se à comunidade, saber comunicar-se. Tudo isso era possível num Teatro Nacional. Ao contrário de alguns colegas, as instituições não me pesam.

P. Ou seja, não tem espírito de contra-poder.

R. Sou pouco dado a radicalismos pequeno-burgueses. A minha inquietação não me impede de funcionar bem dentro de organismos. Por detrás de tudo há um desejo de organicidade na prática teatral. Um desejo de integração do acto teatral numa coisa mais vasta que vai, em última análise, até à animação cultural do próprio objecto, o que foi um traço contínuo da minha formação e do meu trabalho.

P. Voltando ao seu percurso humano e artístico, reencontramo-lo em Portugal em 1974. Regressou logo a seguir ao 25 de Abril ou ainda hesitou em voltar?

R. Regressei um mês depois da Revolução. Enquanto a malta amiga veio logo toda a correr eu preferi aguardar. Com o poder tomado por militares, tive todas as desconfianças. Não calcula o que sofri, em Londres, hesitando a toda a hora se devia tomar o avião no dia seguinte. A ver as notícias na BBC, a ver amigos e colegas a passarem na televisão, em Inglaterra.

P. Essa desconfiança corresponde a uma atitude de cepticismo natural: é céptico por natureza?

R. Não, não. Por natureza vou atrás das coisas com o maior entusiasmo, de um dia para o outro. Tenho ganho alguma prudência com o tempo mas, por natureza, sou completamente imprudente.

P. Já cometeu grandes imprudências de que se arrependa para o resto da vida?

R. Já, mas não lhas vou contar. Hoje já está tudo esbatido... no currículo.

P. Apesar de ter regressado a Portugal, ainda manteve um pé em Londres. De resto, o seu primeiro filho nasceu lá.

R. Ainda tínhamos lá casa. Realmente, ele era para ter nascido aqui mas sentimos que as coisas estavam muito inseguras e, apesar de tudo, o sistema lá era muito bom. Nasceu lá mas veio para cá logo com oito semanas.

P. A primeira peça que encenou em Portugal chamava-se "As Cuecas - Da vida heróica da burguesia". Era um espectáculo que participava da urgência revolucionária daquela altura?

R. Não, de todo. Pelo contrário, foi muito criticada. Aliás, nunca mais me esqueço: tive encontros absolutamente alucinantes na 5ª Divisão, no Palácio Foz, precisamente sobre a inclusão ou não do espectáculo nos programas de dinamização cultural das Forças Armadas, junto do povo, e a peça foi considerada menos própria.

P. O título cheira a farsa...

R. Era uma farsa, uma peça cómica, o que era uma coisa difícil de aceitar naquela altura. Tinha de ser tudo muito sério. Ou então, se era cómico tinha que ser cómico para gozar com os poderes antigos.

P. Como é que se relacionou com o PREC e o Verão quente?

R. Com entusiasmo e paixão.

P. Teve militância partidária?

R. Não, nenhuma.

P. Era um homem de esquerda?

R. Sim, suponho que sim.

P. Ainda é?

R. Sou.

P. E o que é ser de esquerda?

R. Aí está, receava essa pergunta. Ser de esquerda é, pelo menos, não ser de direita.

P. Sentia-se, nessa altura, mais próximo do pragmatismo de Mário Soares, do Partido Comunista ou da esquerda revolucionária e festiva?

R. Sempre tive uma epidérmica rejeição do PC. Estava ideologicamente mais perto do MES. Era a malta do Il Manifesto, em Itália, que eu lia com mais atenção. Era nesse tipo de reflexão que me revia. Hoje, acho que talvez não coubesse exactamente nesse modelo.

P. Porque é que faz hoje essa revisão e acha que, afinal, não cabia lá?

R. Talvez por olhar para aquilo em que nos tornámos todos.

P. Nesses primeiros tempos, depois do regresso a Portugal, fez uma série de espectáculo com Os Cómicos. Chegou a fazer parte do grupo ou era apenas um avençado externo?

R. Era um avençado externo mas acabei por me associar a eles já mesmo na parte final. Fui trazido para o grupo, precisamente, pelo Osório Mateus.

P. Uma vez mais esse seu distanciamento em relação a grupos.

R. Eu já achava pouco correcto ganhar o mesmo que os actores e toda a gente quando trabalhava o que trabalhava e quando o sucesso ou o insucesso dos espectáculos dependia mais de mim do que de qualquer outra coisa. Esse sempre foi o meu problema com os grupos. Penso que os grupos eram um pretexto para os encenadores - na altura em que a boa consciência de esquerda vendia - serem patrões fazendo de conta que o não eram. Para mim, um grupo é um conjunto de pessoas que desenvolve uma prática teatral comum. E eu nunca pensei que isso fosse o caso de Os Cómicos e nunca o foi, de facto. Eram um conjunto de actores que respondiam bem aos estímulos de bons encenadores.

P. Viria a dizer mais tarde que procuravam, nessa altura, "uma espécie de alternativa dentro do Teatro engajado". Estavam, portanto, dentro desse Teatro politicamente comprometido.

R. Estávamos. Isto é, estavam. Fizemos tournées, por exemplo, com "A Mandrágora", que é um texto completamente anti-clerical. Levámo-lo a Bragança, representámo-lo inclusive no pátio de capelas, enquanto a esquerda mais ortodoxa viajava em direcção ao Alentejo para celebrar com as ceifeiras e os camponeses as realidades mais comezinhas. Nós, não dizendo nada de óbvio, íamos por outros sítios profundamente conservadores, senão mesmo reaccionários.

P. Nunca foram apredejados ou, pelo menos, mal recebidos nessa vossa deambulação?

R. Nunca, pelo contrário. E isso prova alguma coisa.

P. Prova o quê?

R. Prova que o bom Teatro, aquele que não diz verdades simplistas e básicas, é muito mais respeitável e respeitado do que se imagina.

P. Esse texto do Maquiavel, "A Mandrágora", com que percorreu Trás-os-Montes no período revolucionário foi um texto a que anos mais tarde acabou por regressar, voltando a encená-lo. Acontece-lhe muitas vezes sentir essa espécie de impulso para refazer aquilo que já fez, revendo-o e melhorando-o?

R. Acontece. Ainda ontem à noite adormeci a reler o Hamlet e a pensar o que é que faria agora, a seguir, com aquele texto. Gostava imenso de pegar, agora, no João Reis e em mais uma actriz ou um actor e fazer outra coisa, outro Hamlet a partir deste.

P. O seu primeiro espectáculo a obter um grande reconhecimento foi o "Ninguém", em 78...

R. Reconhecimento não tenho a certeza que tenha tido.

P. Ganhou, pelo menos, o prémio de melhor espectáculo da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro...

R. Sim, mas ex-aequo com o João Mota. Terá havido algum reconhecimento mas também foi muito incómodo e muito polémico. E houve muita gente que disse horrores do espectáculo.

P. O próprio Ricardo Pais, vinte anos mais tarde, falava desse espectáculo, numa entrevista, como "o grande falhanço da minha carreira, o mais saudável". Porquê?

R. Porque com o que eu sei agora tê-lo-ia transformado num êxito overnight.

P. Porquê: o êxito é uma questão de truque?

R. É. É uma questão de artifício, efectivamente.

P. Mas não é isso mesmo, o artíficio, a essência do próprio Teatro?

R. Sim, mas não é nesse sentido - no sentido mais nobre do artifício - que eu estou a falar. É na comunicação possível encontrada para a articulação de um discurso. Isso sim, é uma coisa que se ganha com a experiência. Na altura, eu não tinha qualquer preocupação em comunicar. Tinha apenas a preocupação em dizer o que tinha para dizer. E não se podem dizer aquelas verdades, àquela dimensão, com aquela ousadia cenográfica sem correr o risco de falhar. Eu falhei.

P. O espectáculo era uma leitura muito pessoal do Frei Luís de Sousa. O que estava em causa - essas verdades a que se refere - tinha a ver com o "ser português"?

R.Penso que sim. Penso que foi o primeiro espectáculo em que estava lá tudo isso.

P. Que verdades pungentes eram essas?

R. Era um espectáculo sobre a nossa crise de identidade, a rebelião que esquecemos, sistematicamente, uma semana depois. Sobre o ser capaz de, depois de um gesto nobre e aventuroso, nos acocorarmos e conformarmos por completo ao poder. Sobre a nossa nobreza de trazer por casa; o erotismo mal assumido; a teimosia do amante nostálgico que regressa a uma pátria do tamanho do leito conjugal. Tudo coisas profundamente portuguesas. É talvez o meu espectáculo mais interessante apesar de tudo o que se disse sobre ele.

P. Apesar dos "horrores" que diz ter lido e ouvido...

R. Sim. Na maior parte dos casos eram recusas em aceitar que o teatro independente podia sair do seu gueto e ser produzido de uma maneira completamente diferente. Foi a primeira vez que se fez uma grande produção sinergética com a Secretaria de Estado da Cultura, a Fundação Gulbenkian e a Televisão. Demorou-me um ano e meio a montar aquela operação financeira. Foi a primeira vez que se utilizaram, cá, microfones estéreo em palco, por exemplo. Eu tive de pôr um reclame da Philishave no programa e fui criticadíssimo por isso. Era a altura em que os grupos de teatro se reuniam para decidir se se vendia ou não Coca-Cola no bar, porque era a água suja do imperialismo.

P. Ou seja, as críticas que lhe fizeram tiveram a ver com as condições de produção e não por ter ousado tocar, de uma forma eventualmente menos respeitosa, no monumento que é o "Frei Luís de Sousa".

R. Ah, sim. Quase ninguém queria saber disso. Acho que não há, propriamente, em Portugal, um orgulho da nossa herança dramatúrgica. Infelizmente. Nem mesmo em relação ao Frei Luís de Sousa. O meu grande erro, foi precisamente não ter amado bastante a peça. Não se pode fazer um texto que diz coisas tão importantes sobre nós - ou através da qual nós queremos dizer coisas tão importantes sobre nós - se não se amar realmente o material. É verdade que a peça não tem, em termos de linguagem, metade do interesse da poesia de Garrett, tem algumas piroseiras românticas do pior gosto, algumas teimosias desagradáveis do próprio Garrett mas tem uma coisa extraordinária que é a construção do II Acto. Aquela sequência até ao momento em que se diz a palavra chave - "Ninguém" - é das melhores coisas do Teatro português. Aliás, é das melhores coisas do Teatro, ponto.

P. Considera, portanto, que o seu "Ninguém" é o espectáculo mais interessante que fez e, considera-o ao mesmo tempo, um espectáculo falhado, o grande falhanço da sua carreira. Como é que mede o êxito ou o fracasso dos espectáculos que faz?

R. Como produtor, por exemplo enquanto director de um Teatro Nacional, tenho que assumir que o importante para o Teatro português não é que haja êxitos. Um espectáculo que tem cinquenta pessoas na sala todas as noites, cinquenta espectadores fiéis, e que seja um espectáculo que se questiona a si próprio, que reequaciona a linguagem ou que, pura e simplesmente, experimenta com a arte de representar, pode ser tão importante como um espectáculo que enche casas.

P. Mas o Teatro, como arte do efémero, é uma arte que não permite reavaliação. Ao contrário do que acontece com um filme ou com um livro, se um espectáculo é um fiasco enquanto está em cena, dificilmente deixará de sê-lo vinte anos depois.

R. Hoje já ninguém faz nada que não grave em vídeo e, pelo menos aquilo que é importante e histórico, vai sendo guardado, quanto mais não seja, pelas televisões temáticas - a ARTE, a Mezzo - por esse mundo fora.

P. Cá nem tanto.

R. Cá nada. Cá é dramático. Se eu não tivesse desenvolvido no Teatro de São João um projecto de auto-produção de vídeos, com uma videoteca finalmente decente, que pode ser vendida comercialmente, provavelmente ainda não haveria memória nenhuma. Inclusivamente, a RTP, no tempo da Maria Elisa - a única altura em que houve alguma preocupação com o teatro - comprou "As Lições" quando a cassette já estava à venda no Teatro de São João. Mais tarde, combinou-se aquilo que eu esperei fazer durante 25 anos e nunca conseguira: gravar com o grande Oliveira Costa - já nessa altura em final de vida - um espectáculo para a televisão. A questão de não haver memória do Teatro português é uma questão gravíssima, uma gravíssima responsabilidade de sucessivas direcções da Televisão do Estado.

P. Esse nosso défice de memória reflecte um défice de auto-estima ou apenas um défice de capacidade de organização e visão a longo prazo?

R. Reflecte o nosso subdesenvolvimento, ponto final.

P. Depois de ter feito o "Ninguém" jurou a si próprio nunca mais se sentar num teatro a trabalhar com actores..

R. Jurei, jurei.

P. Pensou abandonar o Teatro?

R. Pensei. E estive praticamente dois anos sem fazer Teatro.

P. Essa jura teve alguma influência no facto de ter feito, no início dos anos 80, uma série de espectáculos em que a música ganhou um lugar mais importante?
 

R. Fiz essas experiências musico-teatrais com o Zíngaro e o Nuno Carinhas, nos Cómicos, logo a seguir ao "Ninguém", precisamente como reacção. E fui dar seminários a arquitectos, em Londres. Comecei a pensar o trabalho de outra maneira. Curiosamente, foi muito bom. Foi um período de grande reflexão que me permitiu rever todo o conceito de cena e, eventualmente, reformular a minha resistência aos textos e ao teatro tradicional com que mais tarde havia de me reconciliar.

P. De resto, dizia recentemente que uma das grandes pechas do teatro português é continuar a manter a teimosia de não fazer Teatro de repertório. Não é para isso que servem os Teatros Nacionais?

R. É uma das vocações deles, claramente. Aliás, está lá estatutariamente nas leis orgânicas. Se as pessoas querem ler as leis orgânicas ou não, isso não sei. Mas que está lá, está.

P. Essas experiências a que se dedicou depois do "Ninguém" foram consideradas por si próprio como "anti-teatrais". Entrou nas áreas da chamada contra-cultura?

R. Eram obras feitas com uma profunda raiva. Com um desprezo abissal pelo poder. Havia raiva e havia sobretudo uma vontade de experimentar novas formas de constituir narração cénica. Essas eram realmente radicais. Ainda há dias estive a ver como é que foi construído o texto do espectáculo do In-Acção - que funde textos meus com textos do Al Berto, com bocados de uma entrevista do Vasco Pulido Valente, então secretário de Estado da Cultura, ao Diário de Notícias - e é extraordinária a liberdade total em que construí aquilo e a maneira como aquilo faz sentido ainda hoje. É muito engraçado ouvi-lo em cassette audio porque a maneira como o discurso audio-visual se cose com a dramaturgia e a liberdade total no uso de todos os materiais.

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