Tribunal de Contas arrasa gestão da RTP

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O relatório pôe em causa o plano de reestruturação lançado pelo Governo de Guterres mas também a gestão do PSD até 1994 PÚBLICO

O relatório do Tribunal de Contas (TC) sobre a auditoria à gestão da RTP entre 1997 e 2000 é arrasador não só para o Estado como para as sucessivas administrações. Falta de estratégia global para a empresa, ausência de orientação na compra de programas, pessoal a mais e falta de controlo nos recursos humanos, custos de transmissões de futebol acima dos benefícios e prejuízos nas empresas participadas são algumas das acusações do Tribunal de Contas que questiona ainda a necessidade da Portugal Global.

Por tudo isto, e tendo em conta que a empresa está tecnicamente falida, o TC considera que muito dificilmente o plano de reestruturação da RTP possa dar frutos, como se previa, em 2004.

De acordo com as conclusões da auditoria do TC, a gestão da RTP no quadriénio em análise foi marcada, segundo relatórios de consultores externos e da Inspecção-Geral de Finanças, por "deficiências ao nível do planeamento, do controlo orçamental e da não responsabilização dos responsáveis pelos desvios verificados, designadamente no que respeita a custos com programas e pessoal". O maior sorvedouro de dinheiro foi, segundo o TC, o primeiro canal, cuja exploração "conduziu, entre 1994 e 2000, a um avolumar contínuo de prejuízos" que contribuiu "para a formação do défice operacional da globalidade da RTP".

A empresa pública de televisão não cumpriu o disposto no contrato de concessão "em matéria de produtividade e eficiência". Apesar disso, a prestação de serviço público é precisamente uma área em que o TC também aponta o dedo ao Governo. Especialmente porque o próprio contrato, afirma a auditoria, "não permite apurar nem precisar com clareza, em que consiste a prestação do serviço público, ao nível da programação emitida", e até "revela carências relativamente às normas comunitárias". Ao não estabelecer objectivos ou metas à empresa, é ele que convida "à ineficiência e à ineficácia gestionária da RTP e, até, à desresponsabilização dos respectivos intervenientes". Por outro lado, não existe efectivo controlo exterior da prestação de serviço público e o Estado não atribui os montantes de indemnização compensatória que a RTP reclama.

RTP em falência técnica desde 1994

O TC considera que a RTP se encontra "em situação de falência técnica desde 1994" e calcula o seu passivo, no final de 2000, próximo dos 200 milhões de contos (997,6 milhões de euros). De 1993 a 2000, os prejuízos gerados pela RTP ascenderam a um valor acumulado de cerca de 189 milhões de contos (942 milhões de euros). Segundo o relatório, a RTP, entre 1993 e 2000, sobreviveu financeiramente graças a um "contínuo e crescente endividamento da empresa" - "não obstante os significativos apoios que o Estado ainda lhe concedeu" -, o que levou a um encargo financeiro líquido de cerca de 39 milhões de contos (194,5 milhões de euros). Esta desastrosa situação financeira é provocada, na opinião do tribunal, pela "desadequação dos custos ao exercício da actividade televisiva e pela existência de um modelo de gestão não eficiente que permanece por alterar".

Se a situação da empresa nos últimos anos é objecto de fortes críticas, a ausência de um processo de reestruturação também não é poupada no relatório. Desde 1994 foram elaborados diversos estudos e planos de reestruturação que, no total, custaram à empresa 600 mil contos (três milhões de euros), mas que acabaram por nunca verem a luz do dia - e nem sequer apoiadas pelas diversas administrações ou pela tutela. "A ideia subjacente à cultura organizacional e gestionária da RTP tem sido a de que tudo acabará por ter a cobertura financeira do Estado", critica o TC. E a única opção estratégica foi a de pedir mais dinheiro ao Estado, alargando a subsidiação "à cobertura de toda a actividade da empresa", em vez de se resumir à prestação de serviço público.

Pessoal a mais, ligações estreitas com Olivedesportos

O quadro de efectivos da RTP é outra mancha negra da empresa. Além de estar envelhecido, é "globalmente sobredimensionado para as necessidades efectivas" e apresenta uma "alta taxa de absentismo", sobretudo quando comparada com os operadores privados.

Nos quatro anos analisados, foram integrados 468 trabalhadores, sobretudo devido à "ausência de um adequado planeamento e controlo das necessidades de recursos humanos" nas diferentes áreas, o que leva a que algumas funcionem, nesta questão, "de modo desregrado e em regime de quase auto-gestão". O elevado número de entradas e o baixo volume de saída contrariava significativamente todas as conclusões dos trabalhos de consultoria. Para piorar, em 1999 "existia um número elevado de trabalhadores sem funções atribuídas", diz o TC. Os custos com pessoal afecto ao Canal 1 entre 1997 e 2000 era "sensivelmente o dobro dos registados" por um operador privado.

No campo da programação, a RTP não dispunha, nesses quatro anos, de qualquer estratégia definida, e os programas "foram muitas vezes comprados aleatoriamente", sem se estabelecer o que se pretendia e os objectivos a atingir. A empresa limitou-se "a acolher as iniciativas das produtoras externas", e não auscultou o mercado, concentrando-se num grupo restrito de fornecedores. Nos contratos nem sequer se referiam objectivos para as audiências, o que implicava que o ónus do falhanço dos programas ficava apenas para a RTP. Ao atrasar sucessivamente os pagamentos, a TV pública acabou por sofrer "um enfraquecimento crescente da posição negocial".

Já na informação desportiva, a que acarreta o maior custo unitário, por hora de emissão, o TC realça a estreita relação da RTP com a Olivedesportos - que detém o monopólio dos direitos de transmissão de jogos de futebol no país -, funcionando "como garantia para o escoamento dos direitos" que a segunda detém, mas que só lhe "têm acarretado acumulação de prejuízos".

Portugal Global desnecessária

Quanto à "holding" Portugal Global, o TC não encontrou evidência de que a sua criação, em 2000, "tenha trazido algum contributo à resolução dos problemas com que a RTP se debatia", com o próprio Governo quis, na altura, fazer crer. E questiona a verdadeira necessidade da sua manutenção. Não obstante não ter desenvolvido praticamente qualquer actividade em 2000, a "holding" acumulou "prejuízos de cerca de 155,2 mil de contos (773,6 mil euros)", e 76 por cento dos seus custos operacionais corresponderam a despesas com pessoal, essencialmente com os membros do Conselho de Administração - cujos salários, acumulando com o de administradores da RTP, mais que triplicaram. Além disso, "não se constatou a produção de sinergias entre as empresas que integram a Portugal Global".

As participações detidas pela RTP em outras empresas "não têm revelado qualquer rentabilidade" e só acarretam "contribuições negativas". É o caso da FO&CO, da RTC - com excessivos recursos -, Viver Portugal e Porto TV; mas também das falidas LPE, Eurovídeo, Edipim e Multidifusão.

Estado desorientado

O TC é bastante crítico à actuação do Estado em todo o processo da RTP. A sua intervenção enquanto accionista saldou-se "pela completa ausência de orientações estratégicas para a RTP", fosse para "definir o que pretendia da empresa", fosse "para formular e instituir um qualquer processo de reestruturação que conduzisse à sua viabilidade". E a nomeação de sucessivas administração mais não fez do que acentuar a instabilidade.

O Conselho de Administração da RTP apresentou ao Governo um plano de reestruturação que previa que "a empresa atingiria, em 2004 um resultado líquido negativo de cerca de 1,6 milhões de contos (oito milhões de euros), sem encargos financeiros incluídos e considerando a atribuição pelo Estado de uma indemnização compensatória anual de 25 milhões de contos 8124,7 milhões de euros). Mas estes planos poderão não passar de intenções, perspectiva o TC. E nem sequer "se conhece a existência de qualquer outro documento ou plano que vincule formalmente a RTP e o accionista Estado às medidas de reestruturação a implementar, aos objectivos a atingir e aos apoios financeiros a conceder pelo mesmo Estado". Ou seja, não há compromisso verdadeiramente assumidos.

Além de todas as constatações e críticas, o TC termina a sua análise deixando algumas recomendações, tanto ao Governo como ao próprio Conselho de Administração. Ao Executivo, o tribunal aconselha que vincule, "formalmente, a administração da empresa a um processo de reestruturação" e que desencadeie o seu saneamento financeiro. Insta ainda a tutela a rever o contrato de concessão, "no sentido de o clarificar e precisar", a auscultar os níveis de satisfação do espectador e "ponderar sobre a necessidade da manutenção da Portugal Global".

À administração da RTP, o TC recomenda que "defina uma estratégia para a aquisição de programas", "reavalie a actual política de transmissões desportivas", "analise a viabilidade das suas empresas participadas", e que implante um sistema de controlo interno "que conduza à responsabilização dos respectivos intervenientes no planeamento".

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