"A nova biografia de Pessoa será um testemunho de fervor"

Em 1962, Robert Bréchon, um francês que terminara os seus estudos das línguas clássicas ainda antes da guerra e que estaria, à partida, "destinado a ser professor a vida toda", desembarcou na Lisboa salazarista com a mulher. Vários anos antes decidira deixar a França "pela aventura que isso então representava". Arrancava a década de 50. A mulher, muito jovem, pensou num destino improvável: o norte da Europa, a Escandinávia. No Ministério dos Negócios Estrangeiros de Paris foram categóricos: não tinham nada para oferecer nessa região. Havia, contudo, "um óptimo posto" no Brasil, à frente do Liceu Franco-Brasileiro na capital federal, o Rio. Aceitaram.A morte de um filho, o único, na altura, ditou a partida. Seguiram-se a Inglaterra, o Egipto, a Croácia e a Sérvia, sempre como professor, antes que Pierre Hourchade, após vinte anos de serviço, deixasse o seu lugar como adido cultural francês em Portugal. A sucessão foi pedida a Bréchon. Até então, nunca lera Pessoa. É sábado. Estamos no bar do Real Parque, o hotel na esquina entre a Luís Bívar e a Latino Coelho, a não mais que vinte passos do Instituto Franco-Português de Lisboa. Na véspera Bréchon fora feito membro da Academia das Ciências de Lisboa, depois, ao fim da tarde, no Franco-Português, falou a uma pequena audiência, sobretudo de amigos, sobre a relação entre Fernando Pessoa e a França. Hoje, dois dias depois, será condecorado em Beja por Jorge Sampaio com a Grã Cruz da Ordem do Infante, pelo seu papel na divulgação da língua e da cultura portuguesa.Bréchon é actualmente um dos mais conhecidos e conceituados especialistas na obra de Fernando Pessoa. É, entre várias outras obras e textos críticos que desde 1968 tem vindo a dedicar ao poeta, o autor da mais extensa biografia sobre ele editada - "Estranho Estrangeiro" (1996), da Christian Bourgois, editada em Portugal pela Quetzal. Assina também o prefácio de "Oeuvres poétiques", o extraordinário volume que a Pléiade lançou no ano passado - duas mil cento e setenta e duas páginas em papel de bíblia num pequeno formato de 10 por 17 centímetros.Logo na altura do seu lançamento, este volume passou pelas mãos de homem que ultimava os preparativos para a abertura de uma nova editora livreira, a Aden. "Também ele - como eu, quando pela primeira vez li Pessoa - teve o seu 'coup de foudre'. Telefonou-me e disse: 'Quero que escreva para nós uma biografia deste homem'. Ri-me: 'Mas já fiz isso! Há cinco anos, para a Bourgeois..."O assunto podia ter ficado por aí. Mas a Aden não desistiu. O "jovem editor de 45 anos" leu 'Estranho Estrangeiro'; achou-o "fantástico". E Bréchon recebeu novo telefonema. O projecto da abertura da editora era o lançamento de uma colecção de biografias de escritores internacionais - Rilke, Whitman, Poe, Hopkins... -, todos sob um título emblemático: "Le Cercle des poetes disparus", em francês, como "Dead Poet's Society", em inglês, ou "O Clube dos Poetas Mortos", em português. Pessoa tinha que ser o primeiro. "Acabei por aceitar. A opção foi, em vez de seiscentas e tal páginas e um quilo de obra [como "Estranho Estrangeiro"], fazer algo de mais simples, menos referenciado, mais pessoal, para um público mais vasto. Serão duzentas e tal páginas com algumas gramas", explica Bréchon. "Será um testemunho de fervor, de piedade."Confessa: "Sou um devoto. Há quarenta anos que procuro a chave, o sentido último da obra de Pessoa. Não digo que a encontrei, a teoria aparece já no prefácio da Pléiade, agora desenvolvo-a: a ideia é que Pessoa é um homem que só esteve ligado a duas extremidades da vida; tem a nostalgia da infância e o desejo de um prolongamento da vida do homem. Quer ser criança e sobre-homem. Liquida em si, faz o sacrifício (ou a economia) da época adulta, madura, para fazer encontrar a criança e o super-homem."Ainda em "Estranho Estrangeiro", Bréchon acreditava que Pessoa pertencia "a uma categoria intermédia entre a dos jovens loucos que queimam a vida (Kleist, Mozart, Rimbaud, Van Gogh) e a dos velhos sábios que destilam a sua gota a gota, para recolher a essência do tempo (Voltaire, Goethe)". O seu olhar tem vindo a apurar-se, a agudizar-se: "Tenho tido a impressão de estar a redescobrir Pessoa."Voltamos ao início. A 1962. Hourchade, que fora o único amigo estrangeiro de Pessoa em Portugal e o seu primeiro tradutor, parte. Deixa Bréchon instalado na York House, nas Janelas Verdes, com pistas para um circuito de amizades: Jacinto Prado Coelho, João Gaspar Simões, Maria Aliete Galhóz (na altura, a tríade de grandes pessoanos), f+bVergíliof-b Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, Luís Manuel Monteiro Baptista, Luís Francisco Rebelo, Herberto Helder, Ramos Rosa, Sophia, Mário Dionísio... Entre eles, alguém "que não vivia em Portugal, mas que vinha muitas vezes, por amor a Pessoa": Armand Guilbert. "O meu iniciador, o meu mestre. Para mim aquilo que Caeiro é para Soares, Campos, etc..."Guilbert dedicou a vida a estudar, traduzir, divulgar e fazer traduzir Pessoa. Passou o fervor a Bréchon. Indicou-lhe uma primeira leitura: "O Guardador de Rebanhos"."Foi o meu 'coup de foudre', nunca lera antes nada de semelhante. Li depois os poemas destinados a serem o Cancioneiro, e tudo o que estava publicado na altura, que era mais ou menos metade do que há agora". O resto estava na famosa arca, que Bréchon acabaria por ver, "ainda a transbordar", poemas em páginas soltas, uns dentro de envelopes, outros amarrados com barbantes. Como diria Pessoa, "não há acasos: há encontros".

Sugerir correcção