Cinquenta mil portugueses sofrem de stress pós-traumático de guerra

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Os estudos mostram que quem ficou mais perturbado pela guerra não foram as pessoas que tinham problemas anteriores Mauricio Duenas/AFP

Cinquenta mil portugueses que combateram na guerra colonial sofrem actualmente de stress pós-traumático crónico. Na origem do problema está a participação em acções militares nas antigas colónias ultramarinas.

Os dados foram apresentados por Afonso de Albuquerque, especialista do Hospital Júlio de Matos, numa comunicação intitulada "Stress de guerra: a ferida encoberta", que abriu os trabalhos da primeira conferência realizada em Portugal, mais exactamente no Porto, sobre stress pós-traumático.

Para chegar a estes valores, Afonso de Albuquerque utilizou uma extrapolação para a população portuguesa dos dados obtidos em vários estudos realizados nos EUA com antigos combatentes, nomeadamente da guerra do Vietname.

Considerando que foram enviados para as várias frentes da guerra colonial cerca de 800 mil portugueses e que cerca de 40 por cento (300 mil) foram expostos ao combate, esta extrapolação conclui que cerca de cem mil antigos combatentes sofreram de stress pós-traumático durante algum tempo, enquanto outros 50 mil sofrem desta doença de forma crónica.

Na comunicação que apresentou, Afonso de Albuquerque salientou, porém, que este número não inclui os antigos combatentes afectados por outros problemas, como alcoolismo, depressões, problemas familiares e dificuldade de inserção profissional.

Este especialista apresentou ainda as conclusões de um estudo realizado no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, com 170 antigos combatentes da guerra colonial.

O estudo concluiu que apenas dez por cento destes ex-combatentes tiveram os primeiros sintomas da doença durante a guerra, tendo a grande maioria começado a sentir os sintomas do stress pós-traumático depois de ter regressado a Portugal.

"É como se tivessem uma bomba silenciosa"

Entre estes, 44 por cento tiveram os sintomas logo depois do regresso, enquanto em 45 por cento dos casos o stress pós-traumático apenas se fez sentir, em média, doze anos depois de ter acabado a guerra. "É como se tivessem uma bomba silenciosa implantada no cérebro durante anos e, de repente, ela explode e destroça a vida destes homens", explicou o especialista.

Neste estudo, 48 por cento dos ex-combatentes apresentam um grau moderado de incapacidade motivado pelo stress pós-traumático, enquanto 36 por cento têm um grau de incapacidade considerado severo.

Relativamente a patologias associadas ao stress pós-traumático, sentidas em 97 por cento dos antigos militares estudados, as mais frequentes são as depressões, seguindo-se dores de cabeça, alcoolismo, pânico e fobias, úlceras gástricas, doenças tropicais e hipertensão. Disfunções sexuais, epilepsia, doenças de pele e problemas cardíacos também estão associados ao stress pós-traumático.

Nos inquéritos realizados com os 170 antigos combatentes envolvidos neste estudo, a maioria (106) apresentou como principal factor de stress a morte de antigos companheiros de armas, seguindo-se a presença em combate, o ferimento de colegas e a tortura e violação de civis. A sede e a fome, a vida na selva, a prisão, o massacre de populações civis e o isolamento foram outros factores de stress apresentados pelos antigos soldados.

"A guerra é a situação mais traumática"

Para Afonso de Albuquerque, "a guerra é a situação mais traumática que a humanidade já experimentou", tendo sido os conflitos armados que levaram a classe médica a debruçar-se sobre a traumatologia psíquica.

"Depois das duas guerras mundiais e da guerra da Coreia, os estudos demonstraram que quem ficou mais perturbado pela acção militar não eram as pessoas que tinham problemas anteriores, mas as que estiveram expostas aos combates mais extremos", afirmou o especialista, rebatendo uma tese antiga, segundo a qual o stress pós-traumático tem origem em antecedentes do indivíduo.

Nesse sentido, Afonso de Albuquerque salientou que "não são as perturbações prévias existentes mas a exposição ao combate que determina quem vai ter mais possibilidades de sofrer de stress pós-traumático".

Um estudo realizado com ex-combatentes da guerra do Vietname revelou que se registaram 38 por cento de casos de stress pós-traumático entre os que tiveram forte exposição ao combate, descendo esse nível para apenas 8,5 por cento entre os que tiveram uma exposição baixa ou média.

A fome, o frio, a sede e o calor, mas também a fadiga, a presença em combate, os ferimentos, a captura e a tortura são alguns dos principais factores de stress na guerra, segundo o mesmo especialista.

O Simpósio sobre Perturbação Pós-Traumática de Stress, que decorre até amanhã no Porto, é organizado pela Associação de Língua Portuguesa para o Estudo do Stress Traumático.

O encontro, que conta com cerca de uma centena de participantes, é o primeiro que se realiza em Portugal sobre esta matéria e vai analisar temas como o stress de guerra, o stress e a violência civil, a violência na família ou o stress traumático em grandes desastres.

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