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Um projecto insólito, esta adaptação da história homónima de J.G. Ballard. Não é no entanto a primeira vez que Solveig Nordlund trabalha a partir de escritos do autor que já inspirou Spielberg ("O Império do Sol") e Cronenberg ("Crash"). Nos anos 80 a cineasta dirigiu uma curta-metragem ("Viagem a Orion") baseada numa história de Ballard, e realizou, para a televisão sueca, um documentário ("Future Now") sobre a obra do escritor. Vem, portanto, de há bastante tempo o interesse de Solveig Nordlund pelo universo de Ballard - que agora se manifesta mais uma vez em "Aparelho Voador a Baixa Altitude".

O filme seria sempre, de qualquer modo, uma raridade: a ficção científica é um terreno pouquíssimas vezes visitado pelo cinema português (por razões fáceis de adivinhar) e as escassas tentativas nessa área ou falharam redondamente ou se tornaram, pelos piores motivos, objectos de ambíguo "culto". E, nesse sentido, mesmo longe de ser um filme perfeito, "Aparelho Voador a Baixa Altitude" não encontra grande dificuldade em tornar-se imediatamente a mais conseguida incursão na "fc" feita pelo cinema português.

A ficção científica de Ballard é quase "realista", tem mais a ver com uma observação sócio-política do presente do que com grandes delírios futuristas. É o que se passa nesta história, sobre um tempo presumivelmente próximo em que a humanidade vive uma época de decadência - a população diminuiu drasticamente, as mulheres não conseguem ter filhos, e na maior parte das vezes as crianças quando nascem nascem mutantes ("zotes", na terminologia do filme). Para mais, a sociedade totalitária e rigorosamente vigiada não quer mais mutantes e definiu claramente o perfil genético dos bebés que são autorizados a nascer - todos os outros deverão ser eliminados. É neste contexto que "Aparelho Voador a Baixa Altitude" narra a história de um casal (Margarida Marinho e Miguel Guilherme) que vai, clandestinamente, sem se submeter ao controlo das autoridades, tentar ter um filho, seja ele um mutante ou não.

O que aqui era mais dificil foi razoavelmente conseguido: o ambiente. Embora com algumas fragilidades (não se trata propriamente de "Alphaville", de Godard), a estratégia de sugerir o "futuro" através de ângulos de câmara sobre cenários propícios acaba por resultar, salientando o lado artesanal do filme e libertando-o de qualquer preocupação "verista" (pois até estamos mais no domínio de algum onirismo). Dá um resultado anacrónico (este é que parece mesmo um filme dos anos 70) que não é desagradável , às vezes parece evocar Kubrick, outras o Tarkovski de "Solaris", que deverão ter sido as duas referências estéticas (talvez também o "Fahrenheit" de Truffaut) que a realizadora tinha em mente. Mas, sobretudo, dá um resultado honesto - este é um filme que tem alguma coisa a dizer, alguma coisa relacionada com a necessidade de ter esperança e de resistir (a chave para perceber o título é uma personagem messiânica que às tantas aparece), e que o diz, com clareza e convicção, da melhor forma que consegue.

Dentro dos seus limites, que são evidentes, há uma sinceridade e uma ausência de pose em "Aparelho Voador a Baixa Altitude" que, muito francamente, não apetece menosprezar.

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