Ponte de Entre-os-Rios, construída em tempo recorde, inaugurada hoje

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A população de Castelo de Paiva parece finalmente pronta a fechar o ciclo do isolamento e do luto João Abreu Miranda/Lusa

Sem foguetes, sem fanfarra, sem pompa e circunstância. Catorze meses depois da derrocada da ponte de Entre-os-Rios, que custou a vida a 59 pessoas, Durão Barroso inaugura hoje a renovada Hintze Ribeiro numa cerimónia de militante sobriedade.

Entre a impaciência do regresso à normalidade e o cepticismo de quem continua na ressaca da maior tragédia rodoviária portuguesa, a população de Castelo de Paiva parece finalmente pronta a fechar o ciclo do isolamento e do luto.

"Reabertura da ponte: animação e centenas de brindes". O cartaz da discoteca Autarquia, amarrado a uma árvore bem junto ao cais de embarque dos "ferry-boats" que serviram, durante o ciclo mais negro da sua memória recente, o concelho de Castelo de Paiva, soletra mal o estado de espírito de uma população que já esteve à beira de um ataque de nervos e só agora parece começar a convalescer. É com uma militante sobriedade que a nova Ponte de Hintze Ribeiro vai hoje a inaugurar na presença de mais um extenso cortejo ministerial - uma cena redundante, quase enjoativa, desde a tragédia que vitimou 59 pessoas da região - liderado pelo primeiro-ministro Durão Barroso. Sem foguetes, sem fanfarra, sem pompa e circunstância. "Isto de festa não tem nada. Nem há motivos para a inauguração: a ponte já existe há tanto tempo. Ficou bonita, é verdade... mas quanto menos se falar, melhor", resmunga alguém que prefere não dar a cara, nem sequer o nome. Houve jornalistas a mais em Castelo de Paiva, a avalancha deixou nódoas negras.

Apesar da ressaca, que veio para ficar, o concelho de Castelo de Paiva parece ver na abertura ao trânsito da renovada travessia sobre o Douro o último capítulo de um ciclo de abandono e desolação. Com mais ou menos nervoso miudinho e frio na barriga, a população parece disposta a reconciliar-se com o rio e com uma ponte de má memória que custou vidas a mais, mas que parece agora simbolizar um admirável mundo novo de mimos do poder central, traduzidos numa injecção de capital de cerca de 105 milhões de euros. "Ainda há pouco um senhor me disse que só daqui a um mês, depois de ver muita gente a passar a ponte, é que se atreve a pôr lá os pés", esclarecia o agente Rodrigues, um dos homens da GNR destacados para manter a ordem entre os automobilistas que esperam em fila indiana por uma vaga no "ferry-boat". Há quem dormite ao volante a caminho do emprego, outros procuram a outra margem para colher laranjas e a fruta que por lá houver. "Já lá passei no domingo, a pé, mas vai sempre haver algum receio. Hei-de lembrar-me toda a vida", comenta Almira Rosa da Silva, xaile aconchegado ao peito para travar o nevoeiro das oito da manhã, que vai correndo rente ao rio. "Sei que já foi testada, mas também sei que fiquei muito perto do acidente, a cinco carros de distância - só ouvi o estrondo", completa David José.

Receios à parte, a maioria dos paivenses parece estar "ansiosa" pela reabertura da ponte, um acontecimento em que muitos vêem a promessa de um meteórico regresso à normalidade. "As pessoas querem é despachar-se", resume, ao volante, Marisa Isabel Azevedo, pela enésima vez a bordo do "ferry-boat" Cidade de Penafiel. "Isto ficou maravilhoso! E o rio dá-lhe um encanto...", elogia António Cunha, recortando a ponte com o olhar. "Não temos receio nenhum! Não deve ser necessária nenhuma apólice de seguro, pois não?", brinca o casal Viana antes de engatar a primeira e desembarcar em Entre-os-Rios.

O fim de um ciclo

Tudo a tempo e horas. Pela manhã de ontem, cerca de 24 horas antes da cerimónia simbólica de inauguração, ainda se davam os últimos retoques na Hintze Ribeiro. De capacete na cabeça, os operários iam martelando aqui e ali, varrendo os acessos, dando as últimas pinceladas no gradeamento, calcando a terra das bermas - ou enviando compenetradas mensagens SMS. Durão Barroso, acompanhado por Valente de Oliveira e Ferro Rodrigues, deverá chegar ao meio-dia e encontrar-se a meio da ponte com Paulo Teixeira, o autarca paivense, percorrendo-a pé até à margem sul, depois de os comandantes das corporações de bombeiros de Entre-os-Rios e de Castelo de Paiva atirarem uma coroa de flores ao Douro.


"Amanhã lá estamos, não é? Finalmente!", suspira, ao telemóvel, Paulo Teixeira, ainda mal refeito de uma quebra de tensão. Com a inauguração da Hintze Ribeiro, são centenas de dias sem ponte e sem auto-estima que chegam ao fim. "É o encerrar de um ciclo. Pode ver-se a nova ponte de duas maneiras. Tem uma génese trágica, nunca esqueceremos como apareceu - mas também corporiza a capacidade empreendedora dos portugueses. Quando queremos, fazemos bem e depressa", afirmava ao PÚBLICO, mesmo em frente aos esburacados paços do concelho, também em acelerado processo de remodelação. "A economia da região ressentiu-se de um ano sem travessia, em que os transportes de mercadorias tiveram de fazer sistemáticos desvios de 80 quilómetros para chegar à outra margem, através das barragens de Crestuma e do Carrapatelo. A ponte, mas também a nova travessia projectada para servir o IC35, os acessos renovados e as novas vias, vão alterar por completo o tecido económico e social da região. Lá para 2005...", acredita. Para já, o concelho está ansioso - tão ansioso "como quem constrói uma casa e precisa urgentemente de fazer as mudanças, mesmo que ainda não haja electricidade e água corrente". Começou a contagem decrescente para um futuro de costas voltadas para o isolamento e a interioridade. A conta-gotas: "São as 24 horas mais longas deste processo de reconstrução".

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