WORDSONG: música com livro

Alexandre Cortez, Pedro d'Orey e Nuno Grácio são o núcleo duro do projecto Wordsong. Nasceram com a ideia de homenagear o poeta Al Berto, mas agora sonham com outros voos. O livro-disco é lançado no dia 18.

No princípio era o verbo. Neste caso, a poesia de Al Berto. Os Wordsong partiram precisamente dos textos de Alberto Raposo Pidwell Tavares para construir uma música que os transporta para outra realidade. A eles e a nós. Alex, baixista dos Rádio Macau, foi o impulsionador da ideia, que partiu dos laços afectivos que manteve com o autor de "Horto de Incêndio"."Eu dava-me bastante bem com o Al Berto. Éramos amigos, principalmente desde que fizemos um espectáculo chamado 'Filhos de Rimbaud', em que também participaram João Peste, Rui Reininho, Jorge Palma e Sérgio Godinho. E o Al Berto, que era o elemento charneira de todos os momentos musicais. Mantivemos um contacto frequente desde essa altura e chegámos a planear um outro espectáculo, que não se realizou porque o Al Berto já estava doente. O Pedro d'Orey aparece porque já existia uma ligação desde os tempos em que mantivemos um projecto, os Cães de Crómio, e também porque quando fui convidado pela Assírio & Alvim para fazer um espectáculo de homenagem ao Al Berto na passagem dos seus 50 anos - um ano depois de ele ter morrido - contactei o Pedro para interpretar um poema do Al Berto da maneira que ele entendesse. É neste cruzamento que surge a ideia de um projecto musical à volta do trabalho do Al Berto. Eu também tinha gravações feitas em casa que não cabiam nos Rádio Macau e, de certa forma, tinha já elementos musicais que serviram como ponto de partida."Apesar de Alexandre Cortez, Pedro d'Orey e Nuno Grácio terem feito parte dos Cães de Crómio, dos quais ainda fazia parte Marco Franco, esse grupo não deve ser encarado como antecâmara do projecto Wordsong, cujos objectivos são distintos. "Até porque aquilo era uma bolha", nas palavras de Pedro d'Orey. "Foi algo que fizemos porque necessitávamos urgentemente de fazer uma música energética. Não sei se tinha um fim. O nosso objectivo nem era gravar um disco."No caso do Wordsong, o ponto de partida foi, precisamente, a gravação de um disco, apesar da postura marginal relativamente às editoras maiores, destinado a homenagear a obra de Al Berto. "O facto de estarmos a editar este livro-disco através de uma editora de livros", a 101 Noites, "tem toda a lógica porque ainda nem sequer percebemos se o objecto em si é mais um livro ou um disco. O disco é capaz de ser mais mediático, mas há uma relação muito forte entre uma coisa e a outra". Além dos 15 temas editados em CD, a gravação é acompanhada por um livro em que estão impressos não só os poemas originais de Al Berto como as mutações fonéticas (e gráficas) a que deram origem. Ilustrações várias a cargo de Tó Trips (dos Lulu Blind) e Alexandre Cortez compõem a parte mais gráfica do livro, que ainda inclui fotografias de Al Berto resgatadas do arquivo da família do poeta e do "portfolio" de Adriana Freire.Aquilo que os Wordsong fazem é definido pelos próprios como "música com livro". Apesar de experiências aparentadas levadas a cabo por grupos como Os Poetas ou os Linha da Frente, o projecto afasta-se de uns e outros. Não se trata de declamação nos seus cânones habituais, a que foi acrescentada música, nem da adaptação da poesia ao formato canção. Pedro d'Orey é o responsável por essa transmutação, que chega a operar a desconstrução da poesia de Al Berto. "No livro tentámos traduzir graficamente o que se passava musicalmente. Tivemos o cuidado de colocar os textos tal como foram escritos pelo Al Berto e, por outro, a forma como os dissemos, o que nos levou a adoptar várias inserções gráficas. Há uma manipulação declarada e muito intencional dos poemas. Não houve uma intenção bárbara, mas tentámos começar pelo lado abstracto e perceber o que poderia surgir daí. Começámos por abrir o livro à toa, na página 73, e víamos o que saía de acordo com a música que já estava a tocar. No entanto, a coisa foi evoluindo e acabei a pensar naquilo que iria dizer no ensaio seguinte, de acordo com a música que estava a ser feita. Para mim, foi uma evolução interessante. Olho sempre para as coisas do ponto de vista fonético - não quero saber do seu sentido - e desta vez acabei mesmo a pensar nas coisas, como se pode constatar no tema 'Hotel de la Gare'. Nesse caso, estudei o poema, a ponto de eles me acabarem a perguntar onde é que, afinal, estava o improviso. Já estava numa fase completamente imerso na poesia do Al Berto. A obra dele é tão grande que as pessoas acabam por ser puxadas para dentro dela. Para mim, essa fruição veio depois, talvez porque descobri a poesia através da música, nomeadamente através do Caetano Veloso."Apesar de a poesia de Al Berto ter constituído o motor de arranque para o Wordsong, ele não se esgota nessa obra nem na inspiração da poesia. A flexibilidade e liberdade que são premissas do Wordsong permitem a adaptação a um sem-número de situações, o que não deixa de revelar pragmatismo. Além de Alexandre Cortez (Rádio Macau, Cães de Crómio, Palma's Gang), Pedro d'Orey (Mler Ife Dada, Cães de Crómio) e Nuno Grácio (Bobby Master Groove, Cães de Crómio), estiveram presentes nas sessões de gravação músicos como o baterista Alberto Garcia, o teclista Filipe Valentim, Tó Trips, na qualidade de guitarrista, e Carlos Ramalhete, cantor. A formação do projecto pode ser flutuante, de acordo com a necessidade de cada situação. "Combinámos, desde o início, não estabelecer barreiras para este projecto", explica Alex. "De futuro, podemos fazer um trabalho à volta de vários poetas, por exemplo, e não de um único. A nossa intenção principal é dar música às palavras e aos poetas, isso é ponto assente. Até porque, ouvindo o nosso trabalho 'a posteriori', uma das coisas mais interessantes deste disco é o facto de trazer uma forma nova de abordar a poesia, que se afasta da mera declamação ou da sua integração numa canção." Há, nas canções do projecto Wordsong, uma tentativa explícita de desconstrução do ponto de partida, a poesia de Al Berto, fazendo-a chegar a uma nova entidade, a que não serão alheias certas técnicas de improviso levadas a cabo por d'Orey ou a manipulação clínica que é possível nos estúdios de som."Há uma tentativa clara de configurar este projecto como uma coisa pop. Há momentos em que tudo parece conduzir nesse sentido, mas depois tudo se desmorona. É nesse limbo que vamos existindo. Há sempre uma tentativa de nos colocarmos noutro contexto, noutra forma, que não é o contexto ou a forma natural da poesia", acrescenta Pedro d'Orey, desconstrutivista nato pelo menos desde os tempos em que fez parte, como vocalista, da primeira formação dos Mler Ife Dada. Apesar de uma opção nítida pela descontextualização, sente-se no trabalho um respeito pela figura e universo de Al Berto, que dá pertinência ao livro-disco que irá ser lançado no dia 18 de Abril, na Fnac do Chiado, em Lisboa. "Fizemos pesquisa sobre o Al Berto que chegou ao ponto de investigarmos a sua colecção de discos. Tivemos a confirmação de que não nos afastávamos do seu universo. Nos 15 temas que fizemos, existem cambiantes. Há canções que não têm nada a ver com o Al Berto e outras em que procurámos encaixá-las no imaginário musical dele. Há um caso flagrante em que fazemos uma citação ao Duke Ellington, há também o 'Hotel de la Gare', tema a partir de uma canção de um filme italiano... O Al Berto gostava muito de Nick Cave, Bowie e Lou Reed, e se essas influências não estão lá de forma explícita, elas aparecem implicitamente. Para lá disso, ele tinha muita música francesa e música clássica, mas não considero que o seu universo musical se restringisse à colecção de discos. Saíamos à noite, encontrávamo-nos em discotecas, falávamos sobre o Nick Cave e é também através desse contacto que defino o espectro musical do Al Berto. Do ponto de vista musical, não está ali apenas a música que gostamos de fazer, porque ela está condicionada a um hipotético universo musical do Al Berto."As 15 canções do primeiro disco do projecto Wordsong vagueiam pela contemporaneidade sem se prenderem a um género específico. Apesar do formato próximo da canção, como acontece em vários casos, encontram-se exemplares de bossa-nova reciclada, drum'n'bass transviado, trip-hop manipulado, sonoridades jazzy, experimentações e até um sample de Carlos Paredes. Não é uma música que cristalizou num tempo, num modo ou sequer nos gostos de Al Berto. "Era uma pessoa que acompanhava o evoluir dos tempos. Uma época houve em que era muito conotado com a beat generation, mas a partir de certo momento não se pode dizer que aquilo tenha a ver com a beat generation. Se fosse vivo, continuaria a comprar discos que têm a ver com os dias de hoje e não qualquer coisa requentada. Disso estou certo."Apesar de partir da poesia, o Wordsong aposta em vários meios até chegar a um estado multimédia quase total. O disco e o livro só poderão ser comprados em conjunto, mas nos espectáculos surgirá também o vídeo como elemento activo. Neste momento, está igualmente a ser preparado um sítio na Internet. O vídeo é da responsabilidade de Nuno Franco e, para lá da projecção de imagens, pretende interagir com o desempenho em palco. "As imagens vão ajudar a contextualizar a poesia e a música, mas vão também funcionar como uma terceira interpretação. Convidámos o Nuno Franco para fazer um trabalho que não será uma produção hollywoodesca, mas que contém uma interpretação própria de cada tema. Irá também existir uma forte interacção entre o que o Pedro d'Orey está a cantar e o que as imagens mostram, mas não queria revelar mais, sob pena de quebrar a surpresa. Até por razões conceptuais, a imagem vai estar colada à música. E este espectáculo pode adaptar-se a imensas situações. Tanto o podemos fazer numa livraria como num auditório para 500 pessoas. O Wordsong não tem, obrigatoriamente, que ser este espectáculo ou este conceito. Poderemos fazer coisas no futuro que não têm a ver com poesia. Pode ser numa exposição de um artista plástico ou numa exposição dos nossos trabalhos, ou num projecto de dança. Queremos ter a maior liberdade possível do ponto de vista criativo."Esta opção estética tem também a ver com a postura "à margem" do projecto Wordsong, que optou pela edição numa pequena editora, neste caso de livros, fora do habitual circuito das companhias discográficas multinacionais. Essa opção reflecte não só a crise por que passa a indústria fonográfica, mas também o desafio de encontrar novas formas de produzir e expor o trabalho. "Hoje não é preciso muito para se fabricar um disco ou um livro. Muitas vezes as pessoas fazem uma ideia errada do investimento necessário para publicarem qualquer coisa. Em termos editoriais, as portas estão a ficar cada vez mais fechadas, nomeadamente no que diz respeito ao mercado discográfico, o que pode ser resolvido, de alguma forma, através destas estruturas mais pequenas. O futuro destes projectos especiais passa por aí, porque não vejo, para já, cabimento de um projecto como este numa multinacional. Isto só quer dizer que existem outras soluções."

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