Jornalistas acusados de genocídio enfrentam Tribunal Penal Internacional para o Ruanda

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Julgamento dos repórteres que incitaram os massacres no Ruanda, em risco de prisão perpétua, pode abrir precedente para os "media"

O julgamento de três jornalistas ruandeses acusados de incitamento à violência, a decorrer em Arusha, na Tanzânia, poderá criar um importante precedente, no âmbito do Direito Internacional, no que respeita ao papel dos "media" durante períodos de conflito.

Na barra do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda encontram-se três jornalistas acusados pelos procuradores da Organização das Nações Unidas (ONU) de incitamento à violência durante os massacres ocorridos em 1994. No decorrer destes massacres, perpretados pela etnia maioritária hutu contra a minoria tutsi, mais de 800 mil pessoas perderam a vida. Ferdinand Nahimana e Jean-Bosco Barayagwiza, ex-responsáveis por uma rádio ruandesa e Hassan Ngeze, antigo editor do jornal sensacionalista "Kangura", enfrentam diversas acusações de genocídio e de crimes contra a humanidade. Os arguidos incorrem em penas que poderão ir até à prisão perpétua, de acordo com o "New York Times".

De acordo com testemunhas citadas nas actas de acusação, durante os cerca de 100 dias que durou a matança no Ruanda, a rádio Mille Collines (apelidada de Rádio Ódio) continuava a inflamar os ânimos, incitando as mílicias hutus a "ir trabalhar", ou a "ir limpar", advertindo que "as campas ainda não [estavam] cheias".

Mas não são apenas jornalistas a cair sob a alçada do denominado "ulgamento dos 'media'". Também Simon Bikindi, um conhecido cantor ruandês, foi indiciado pelo tribunal com acusações de genocídio, por alegadamente ter composto canções que contribuíram para fomentar o ódio aos tutsis. Bikindi foi preso na Holanda, onde residia, e será igualmente julgado em Arusha.

O único precedente legal nesta matéria remonta a 1946 e foi estabelecido no julgamento de Nuremberga, em que Julius Streicher, responsável pela publicação do semanário "Der Sturmer", de cariz assumidamente anti-semita, foi condenado à forca. No entanto, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, por se encontrar sob a alçada da ONU, não contempla a pena de morte, pelo que este tipo de sentença está desde logo afastado.

O colectivo de juízes que julga este caso, presidido pelo sul-africano Navanethem Pillay, analisará os mais de 50 mil documentos e 600 cassetes compilados pela acusação, num caso que poderá contribuir para estabelecer a doutrina jurídica que virá a ser seguida no futuro pelo Tribunal Penal Internacional, sediado em Haia. De acordo com Jorge Pegado Liz, advogado e membro da Alta Autoridade para a Comunicação Social, "um acordão de um Tribunal especial como o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda não pode constituir (...) um precedente legal para qualquer outro Tribunal, designadamente o Tribunal Penal Internacional". "No entanto", adverte Pegado Liz, "a doutrina que aí se estabeleça poderá influenciar futuras decisões e abrir uma perspectiva nova" no tratamento de casos envolvendo os "media".

O que está implicitamente em julgamento em Arusha, mais do que as acções individuais dos arguidos, é o papel dos "media" durante períodos de conflito. Por outras palavras, poderá o jornalismo matar? Onde começa a responsabilidade dos jornalistas?

Em 1998, durante a campanha do Kosovo, a televisão estatal sérvia foi bombardeada pela NATO com a justificação de que "emitia propaganda do regime sérvio". No entanto, durante a actual campanha no Afeganistão, diversas televisões e jornais norte-americanos acataram um pedido do Presidente George W. Bush no sentido de não transmitirem entrevistas de Osama bin Laden, por alegadamente poderem conter "mensagens em código" para futuros ataques terroristas. Correm ainda insistentes rumores de que o Pentágono e os serviços de informação norte-americanos passam informações falsas aos "media" acerca das operações em curso no Afeganistão.

Onde se traça a linha que separa a falta de objectividade e a informação tendenciosa da propaganda pura e simples? E, mais além, onde acaba a propaganda e começa o crime?

Pegado Liz reconhece que "a fronteira é muito difícil de estabelecer e é preciso avançar com muita cautela". No entanto, afirma que "os órgãos de comunicação social devem ser responsabilizados criminalmente", acrescentando que "ao contrário de constituir uma ameaça à liberdade de imprensa, esta legislação é uma garantia contra os abusos e os desvios da liberdade de imprensa para finalidades criminosas".

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