Um discurso pela ciência

Será que a ciência é um saber meramente convencional, que pouco ou nada tem a ver com o mundo físico, que apenas fala das pessoas que a fazem e não das coisas, de si mesma e não do mundo?

"O Discurso Pós-Moderno contra a Ciência" tem como objectivo central desmontar isso mesmo e teve como detonador um outro livro publicado em 1987: "Um Discurso sobre as Ciências", de Boaventura de Sousa Santos. A primeira crítica que se pode fazer a António Manuel Baptista é, assim, a da crítica tardia. Suficientemente tardia para ter saído depois de nada menos do que 12 edições do livro que analisa, que se tornou entretanto um clássico no seio dos admiradores do sociólogo pós-moderno coimbrão.Posto isso, e porque mais vale tarde que nunca, AMB deve merecer os parabéns por se ter dado ao trabalho de fazer fora de tempo aquilo que muitos julgariam que já não valia a pena fazer. "O Discurso Pós-Moderno contra a Ciência", que tem como subtítulo "Obscurantismo e Irresponsabilidade", é uma diatribe contra um certo discurso pós-moderno segundo o qual a ciência não fala do mundo, mas apenas de si mesma (apenas reflecte as circunstâncias sociais da sua produção e não a realidade material) e constitui um saber equivalente à metafísica, à astrologia, à religião, à arte ou à poesia.É contra esta visão do "construtivismo social" da ciência que o livro de António Manuel Baptista se levanta, argumentando, às vezes com exasperação, muitas vezes com paciente didactismo, exemplificando aqui e ali, falando do que é a "ciência dos cientistas", iluminando a diferença entre esta e a mesma ciência quando vista pelos olhos dos sociólogos e dos filósofos - de facto, dir-se-ia que falam de coisas diferentes e talvez falem - e explicando que tipo de saber é a ciência natural, o que pretende, quais são as suas pretensões e quais os seus limites.AMB é um cientista cultivado, um contador de histórias de largo repertório, um argumentador inteligente e um homem com ironia e sentido de humor. E o seu livro, que aborda uma temática central na sociedade actual, tem momentos divertidos, de pacientes explicações e de clara argumentação. Mas a escrita ressente-se da sua origem. Como AMB explica na Nota de Abertura, este livro nasceu de uma comunicação apresentada num colóquio em Novembro de 2001, que Guilherme Valente, editor da Gradiva, convenceu o autor a transformar em livro. Assim, a obra exibe, por vezes, o estilo oral de uma apresentação (adaptado a um colóquio, mas menos a um livro), a sua estrutura é algo errática (adivinham-se acrescentos que lhe deram volume, mas quebraram fios discursivos) e sente-se com frequência a falta de uma abordagem mais profunda.Outra limitação que deve ser evidenciada é que, quando AMB fala de "ciência" e do seu método, se refere estritamente às ciências naturais, às ciências duras. AMB não esconde, aliás, a sua desconfiança relativamente ao método de validação das ciências sociais.No entanto, apesar das suas falhas, o livro merece leitores (seria bom, em particular, que os praticantes das ciências sociais o lessem) e suscita questões com o mérito de pretender discutir em vez de apenas criticar, de fundamentar em vez de apenas rotular, de dar razões para as suas conclusões e exemplos para as suas afirmações, de ter a preocupação da clareza em vez da obscuridade.É claro que os cientistas devem perceber (e percebem, em geral) que "esta" ciência, aquilo a que chamamos ciência ou ciência moderna, a ciência que foi feita até hoje, que é feita hoje, não era nem é a única ciência que se poderia ou pode fazer. É evidente que a investigação que é feita depende, em certa medida, dos valores de quem a faz.Teria certamente sido possível escolher outros problemas para estudar, dar-lhes outro nome, atacá-los de outra forma, formular hipóteses diferentes das que foram formuladas, testá-las de formas também diferentes, certamente interpretar de forma diferente os resultados das experiências, em muitos casos enunciar o saber final obtido de forma diferente, teria, sem sombra de dúvida, sido possível encontrar metáforas distintas das que são hoje prevalentes para vulgarizar esse saber e é absolutamente claro para todos que as utilizações da ciência poderiam ter sido diferentes do que são e do que vão ser.Mas concluir daqui que a ciência é um saber meramente convencional, que apenas depende das negociações que são levadas a cabo pelas forças sociais vigentes, que nada tem a ver com o mundo físico, que apenas fala das pessoas e não das coisas, de si mesma e não do mundo (ou que é "autobiográfica", como diz Boaventura de Sousa Santos) só se pode fazer por manifesta atracção pela "boutade". AMB salta sobre este tipo de afirmações, sem contestar que muito do que se chama ciência é socialmente condicionado. É evidente que a aplicação da ciência, a tecnologia, é determinada socialmente. É evidente que a investigação científica, enquanto prática social, é determinada socialmente. É evidente que o "corpus" de conhecimento que chamamos ciência é determinado socialmente, na medida em que a sua produção, formulação e actualização obedecem a objectivos e apetites determinados socialmente, privilegiam (e esquecem) perspectivas determinadas socialmente.Mas daí a dizer que o conhecimento natural é inventado pelo social vai um passo demasiado largo - talvez admissível como metáfora, mas certamente uma má metáfora. É também esta metáfora que AMB contesta.Uma das razões desta má metáfora tem a ver com a confusão entre a utilização da expressão "ciência" enquanto actividade (investigação científica) e "ciência" enquanto resultado dessa actividade (conhecimento).Considerar que o conhecimento recolhido, porque é influenciado pelo social, não pode dizer respeito ao mundo físico, considerar que esse conhecimento carece de objectividade, que é inútil ou equivalente a uma religião ou superstição, é desonesto e nocivo.É desonesto porque escamoteia o sistema de validação e refutação que a ciência usa, a sua necessidade de confirmação independente, a sua capacidade de fazer previsões verificáveis, a sua disponibilidade para recusar antigas verdades perante novas provas.É nocivo porque se arrisca a lançar os incautos na senda de sistemas de crença irrefutáveis, que não possuem nenhum sistema de verificação, e que são por isso apenas formas de manipulação totalitárias.Um dos pontos que AMB não explora suficientemente, e mereceria certamente algumas páginas, é precisamente esta "equivalência" entre ciência e pseudociência que alguns cientistas sociais consideram existir. Considerar que, com um pouco de imaginação, poderíamos construir uma sociedade sem a força da gravidade ou que a constante de Planck reflecte uma visão eurocêntrica e machista é uma ficção espiritualista que a realidade desmente todos os dias. O princípio de uma vacina age em Lisboa como na Austrália, a mesma física que sustenta as catedrais góticas sustenta os arranha-céus, os engenheiros do programa espacial chinês fazem os mesmos cálculos que os seus colegas americanos e russos. Apesar disso, porém, há quem considere (como um outro autor que AMB escolhe como alvo das suas críticas mais vivas, Harry Collins) que o conhecimento científico é uma convenção social, "negociada" entre os cientistas."Quanto àqueles sociólogos da ciência mais ligados ao chamado construtivismo social", escreve António Manuel Baptista a propósito, "que proclamam que a ciência não tem qualquer estatuto de objectividade diferente de outras convenções ou construções sociais, um bom conselho será o de não viajarem de avião. Poderão escolher o tapete voador ou qualquer sistema mágico (aliás menos poluente e não facilmente transformável em míssil contra arranha-céus), pois existe o risco de que, quando estejam voando, os cientistas consensualmente convencionem que, afinal, estão erradas as teorias e as experiências em que se baseia a mecânica e aerodinâmica do avião. Nessa altura, evidentemente, de acordo com os construtivistas sociais, o avião cai,"É fácil criticar num ensaio aquilo que ele não tem, mas há áreas que é pena que AMB não tenha explorado. É evidente que existem restrições de ordem cultural e social que influenciam o que se investiga e a formulação do conhecimento obtido. Teria sido interessante, assim, saber o que pensa AMB que deveria ser o papel dos sociólogos e dos filósofos da ciência e quais as contribuições oriundas destas áreas que considera positivas para a evolução da ciência.PS - Lamentável é o único adjectivo que se pode aplicar à reacção de Boaventura de Sousa Santos ao livro de AMB e que o sociólogo fez publicar em artigo de duas páginas no "Expresso-Revista". Depois de considerar que o livro de AMB o insulta (o seu artigo chama-se aliás "A construção de um insulto"), BSS chama de caminho "alarve" a AMB e termina dizendo que a publicação deste livro se deve certamente "ao perfume do poder que está a inebriar uma nova direita sobre a ciência e a educação".

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