O livro negro do colonialismo no Congo

Durante várias décadas, Leopoldo II governou o Congo à distância. Seria responsável por um assassínio em massa. Hochschild narra a história de forma notável

"O Fantasma do Rei Leopoldo", do norte-americano Adam Hochshild, é um livro de história bastante peculiar. O autor optou sobretudo por organizar o manancial de informação a que teve acesso - biografias, correspondência, relatórios -, obedecendo a técnicas de narrativa próprias da ficção (não fosse ele professor de estilo redactorial): trata as figuras históricas como se fossem personagens, buscando os seus antecedentes e intimidades; descreve os campos da acção; e consegue eliminar os escolhos em que os leitores pouco dados a leituras maçudas costumam naufragar. A figura principal da obra é Leopoldo II, o Rei dos belgas - entre 1865 a 1900 -, que empreendeu a mais matreira das conquistas coloniais. Aborrecia-se com a ideia de ser apenas o rei de um "petit pays". Antes mesmo de subir ao trono, pretendera obter possessões coloniais. A oportunidade surgiu quando se inteirou da viagem do jornalista Henry Stanley pela África central (numa das primeiras travessias ao continente) em busca do proeminente professor dr. Livingstone - um dos acontecimentos mais mediatizados do século XIX. Para realizar os seus objectivos só precisou de usar as armas que tinha ao seu dispor: um sólido conhecimento da geografia africana, superior a qualquer dos seus contemporâneos, bastante astúcia e poucos escrúpulos. Depois de muita intriga, Leopoldo assegura a sua participação na Conferência de Berlim (a tal da partilha de África, em 1885), para reclamar uma porção interior do continente. Para a satisfação do seu desejo vão concorrer dois factores: 1) a pretensão do requerente não chocava com os interesses das potências coloniais; 2) a importância da parcela requerida não prejudicava os interesses das potências coloniais - até finais do século XIX a colonização em África tinha-se circunscrito ao litoral. Leopoldo II, endividado (possuir uma colónia tinha os seus custos), é ajudado por um acontecimento aparentemente anódino: Dunlop, inventor irlandês, certo dia, vendo o filho a passear de triciclo, começa a pensar num meio para diminuir a pressão da roda metálica sobre o asfalto. Assim aparece o pneumático. A nascente indústria automobilística vai tornar a borracha uma das principais riquezas do final do século. A sua extracção, poucos anos depois do seu início, vai constar entre as explorações mais criminosas de que há memória. Missionários, funcionários e diplomatas, de várias nacionalidades, que estiveram no Congo, notaram que os barcos iam carregados de soldados e armas e voltavam a transbordar de borracha. Não se negociava nada, não se pagava nada. Os soldados arrebanhavam as pessoas das aldeias e obrigavam-nas a trabalhar como escravas. Para controlar o desperdício de munições, exigia-se que se apresentasse uma mão cortada por cada bala que se gastasse. As aldeias que se rebelavam eram devastadas pelas tropas da Force Publique. Calcula-se que tenham morrido, nos anos da borracha, mais de cinco milhões de congoleses - não foi por acaso que Francis Ford Coppola, para filmar outra experiência de loucura e carnificina, escolheu "Coração das Trevas", de Joseph Conrad, cuja acção se desenrola no Congo de Leopoldo II. Hochschild nota que a questão colonial do Congo belga é uma das mais bem documentadas. Não que o procedimento de Leopoldo II fosse diferente do das outras potências coloniais. Franceses, ingleses, portugueses e alemães têm histórias de assassínios em massa nas suas possessões. Mas o Rei dos belgas era o único monarca que administrava pessoalmente uma colónia - logo, atacando-o, não atacava um Estado. Contra ele se desencadeou uma séria campanha internacional para denunciar os excessos cometidos no Congo (segundo o autor, nos moldes em que hoje faz a Amnistia Internacional); porém, o monarca, em resposta, montou uma dispendiosa operação de charme, subornando, para o efeito, jornalistas e diplomatas. Este livro é também a histórias dos homens que deram a vida para que o extermínio no Congo chegasse ao conhecimento dos europeus da época. Pouco antes de morrer, Leopoldo II vendera o Congo ao Estado belga. Mas, como se sobre o país ainda pairasse o fantasma do Rei, a vida das populações não conheceu grandes transformações. Depois da independência, Mobutu tornou-se o monarca que mudou o nome do país. Durante os 32 anos do seu mandato pouco mudou o figurino da administração de Leopoldo II - acumulou tanta riqueza como ele e impôs aos seus semelhantes um regime com poucas diferenças.

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