Um bambi no tribunal de Braga

Um Felix Kubin eslavo? Possivelmente. Ou nem por isso: o fato azul-bebé, a camisola negra apertadinha semeada de subtis raios de sol brilhantes, e o órgão Casio a tiracolo, bem como o alemão cerrado de uma ou outra canção-anedota, podem muito bem ser legítimos sintomas da proximidade (geográfica, até) entre o projecto Nova Huta, cabeça de cartaz da segunda edição do festival BRG2002, e um seu antecessor no evento, o terrorista "kitsch" Felix Kubin. Mas há na pele queimada de Reznicek, nome de guerra do particularíssimo projecto da nova electrónica alemã que dá pelo nome de Nova Huta, substanciais especificidades que vincam a diferença - do tom torrado da pele ao cabelo quase Jackie Chan, passando pela militante ascendência eslava. Os efeitos é que foram os mesmos: rendição total ao "casio rock" do sobrinho de Vrantislav Bambi Robot. Em plena sala de audiências do tribunal.Os primeiros minutos da noite de estreia deste segundo Festival Internacional de Música Electrónica e Arte Multimédia que dá pela alcunha de BRG2002 não faziam prever a explosão alimentada pelo imperturbável porta-voz da Nova Huta. Com instalações ampliadas - a primeira versão do evento organizado pela editora portuense Matéria Prima fez-se exclusivamente no primeiro piso do Antigo Tribunal Judicial de Braga - e uma declarada filosofia de disseminação assente na reabilitação do espaço urbano envolvente, cujas montras se viram ocupadas por intervenções artísticas várias, o BRG2002 acabou por confirmar o sucesso da estreia. Algum público - a maioria tendo viajado expressamente do Porto -, muita oferta e o óbvio mérito de conjugar a insistência em "sonoridades menos óbvias da produção musical electrónica actual", de portas abertas ao experimentalismo mais agressivo, e a linguagem lúdica, para não dizer cómica, de parte incerta da nova safra musical europeia. Foi exactamente pelo lado experimental, estridente e assumidamente "noise" da coisa electrónica que começou a noite de sexta-feira. Pela mão do projecto nacional Digital Scratcher e à boleia de dois solenes Power Book, a iniciação ao BRG2002 fez-se pela via minimalista, com muitas frequências sonoras em estado quase bruto literalmente ao barulho, e uma inteligente manipulação das imagens, que segregaram uma relação abertamente analógica com o som - quando este bloqueava, quase como num disco riscado, a imagem emperrava sincronizadamente - ao longo de uma "performance" assente numa lógica subtil de exploração do potencial musical do erro informático e de alusão à era da reprodução em série. Complexo.O concerto seguinte, a cargo dos bracarenses V.O.R.T.E.X., prolongou a seriedade da primeira parte, ainda que numa vertente mais melódica - furiosamente industrial, é certo -, às vezes mesmo a resvalar para o gótico, da estética electrónica. No andar de baixo, o DJ Rui Oliveira, do colectivo Muesli, ia preparando o caminho para o clímax que haveria de seguir-se, com uma selecção muito entre o imprescindível "electro" - à sombra de uns New Order ou de uns Dead or Alive - e o "glam" mais perverso.A chegada de Nova Huta à sala de audiências deu o tiro de partida para 45 minutos de delírio "soviet chic". A assistência começou mortiça, mas não perdeu tempo: o surpreendente "playback" do homem de azul-bebé, que se lançou numa interminável ladainha sobre as origens do seu patenteado "datschadelic", foi suficiente para desarmar o público. A história é, de resto, comovente: pois não é que o senhor se dedica ao "kitsch" musical em homenagem ao tio Vrantislav Bambi Robot, um checo que se afeiçoou ao Casio em Nova Huta, na Polónia, quando tocava numa fábrica de aço para garantir a desejável alegria no trabalho propagandeada pelo regime comunista? Segundo esta improbabilíssima versão da história, o tio Bambi confiou a Reznicek, pouco antes de morrer, o órgão em causa com o bónus de 99 revolucionárias composições musicais. Um testamento que o agora Sr. Nova Huta jurou respeitar, fazendo da exportação das suas polcas e valsas electrónicas "lo-tech" - o inseparável Casio é o único ingrediente consentido - uma missão. E em que consiste o "datschadelic"? Num "kitsch" feito de bastões insufláveis com a bandeira americana brandido por um compenetrado Nova Huta, em telediscos inenarráveis ao melhor estilo Festival da Canção, na total interacção - coreográfica, sobretudo -com o público, na prática de lançamento do disco e numa derrapagem final que incluiu versos em português (género "Podes guardar as tuas lágrimas para outra pessoa") muito mal cantados por Rui Oliveira e entusiasticamente aplaudidos pela entusiástica plateia masculina. Em síntese, o brilhante resultado das criações cozinhadas pelo tio Bambi na sua "datscha", em plena ressaca de umas valentes goladas de vodka.Depois do furacão Nova Huta, o palco pertenceu a DMX Krew, um estranho projecto a solo de Ed DMX que arrancou com os acordes do tema principal da banda sonora do saudoso "Rocky", numa alegre revisitação dos anos oitenta. Quem ainda ficou mergulhou de olhos abertos no som festivo e amexicanizado do colectivo Atletico Sound Sister. À espera da dose reforçada da noite de ontem.

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