O que é que as mãos limpas mudaram em Itália?

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Com Berlusconi na chefia do Governo assiste-se hoje a um novo braço-de-ferro entre o empresário/político e os juízes DR

A data ficou: 17 de Fevereiro de 1992, o dia em que os juízes de Milão apanharam em flagrante o socialista Mario Chiesa, responsável por um lar de idosos naquela cidade, a receber "luvas". Simbolicamente é o início da operação anti-corrupção Mãos Limpas, que vai levar à queda de I República Italiana, à derrocada de alguns dos mais importantes partidos (a Democracia Cristã e o Partido Socialista Italiano), à prisão de muitos políticos e empresários, ao suicídio de alguns, à estupefacção da Itália e do mundo.

"Sr. deputado, esta é a sua cela" - este título de uma revista da época mostra bem o clima que se vivia. Cada nova prisão, cada nova confissão, levava os juízes a desenrolar um pouco mais a teia de corrupção que envolvia meia Itália. Ao princípio eram apenas os quatro "justiceiros" da "pool" de Milão, os juízes Antonio Di Pietro, Piercamillo Davigo, Gherardo Colombo e Gerardo D'Ambrosio, a trabalhar para o procurador Francesco Saverio Borrelli. Depois descobriram que o novelo era grande demais e os inquéritos foram-se alargando.

A operação nunca teve um fim declarado - as investigações anti-corrupção prosseguem hoje -, mas o final de 1994 marcou um momento de viragem. Para trás tinham ficado os momentos mais altos das Mãos Limpas, cenas que a Itália não esquecerá.

Como o dia em que o líder socialista Bettino Craxi, já sob investigação, foi recebido com uma chuva de moedas à saída do seu hotel em Roma, por uma multidão indignada. Ou a humilhação do então primeiro-ministro Silvio Berlusconi ao receber um aviso de inquérito judicial no dia em que inaugurava, em Nápoles, uma reunião das Nações Unidas sobre o combate à criminalidade. Ou ainda as imagens de políticos e empresários, algemados, a serem levados para celas de prisão, onde alguns acabaram por se suicidar. Ou, por fim, o momento, em Dezembro de 1994, em que o juiz Di Pietro, em plena sala do tribunal, despiu a sua toga e anunciou que ia abandonar a carreira de magistrado.

Berlusconi contra juízes

O balanço não é fácil. A equipa das Mãos Limpas entregou à justiça mais de três mil "dossiers", resultado de 20 mil inquéritos. Segundo a "Economist", oito antigos primeiros-ministros e cerca de cinco mil empresários e políticos foram acusados. Dois anos depois do início da operação - também conhecida como Tangentopoli, de "tangente", ou "luvas" - o Parlamento italiano tinha recebido pedidos de levantamento da imunidade de 619 dos seus membros.

No entanto, dez anos depois, nenhum dos condenados está na prisão (apenas um permanece em detenção domiciliária). E, desabafa desanimado o juiz Gherardo Colombo: "Dentro de um ou dois anos, o nível de prescrições nos processos das Mãos Limpas chegará a 60 por cento. A conclusão dos cidadãos é que a justiça já não funciona".

Mas o mais frustrante para os magistrados é o facto de um dos seus investigados, Silvio Berlusconi - contra o qual há ainda vários processos a decorrer - ter, depois de uma pequena cura de oposição, regressado ao poder. E mais do que nunca irritado com aqueles a quem chama "juízes vermelhos".

A guerra está novamente aberta, mas desta vez é Berlusconi quem está a dar as cartas. Para além de o seu Governo ter aprovado leis que despenalizam as falsificações de contas, e reduzem os prazos de prescrição dos delitos financeiros (beneficiando o próprio primeiro-ministro nos processos que enfrenta), pretende agora reformar a magistratura de forma a subordinar os juízes ao Ministério da Justiça. Os magistrados e a oposição de centro-esquerda têm-se manifestado veementemente contra esta reforma, que, dizem, irá acabar com a independência do poder judicial, colocando-o sob o controlo directo do poder político.

Quanto à corrupção, está longe de ter desaparecido. Na quarta-feira passada, a sede romana da Força Itália, o partido de Berlusconi, foi alvo de uma rusga no âmbito de uma investigação sobre adesões fantasma (pagas por generosas "contribuições" externas) em Turim. Para o antigo juiz Di Pietro "passa-se em Turim o mesmo que em Milão na época [das Mãos Limpas]. Gestores muito eficazes continuam a arranjar dinheiro às escondidas para a política, para as campanhas, para as adesões. E a classe política que daqui resulta não é a melhor para representar o país".

Mas há, apesar de tudo, algumas boas notícias: segundo o juiz Colombo, o combate à corrupção fez com que um quilómetro de via férrea em Milão, que antes das Mãos Limpas custava 80 mil milhões de liras (40 milhões de euros), custe hoje apenas 44 mil milhões.

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