Cornucópia encena peça-poema de Sophia

E o teatro voltou a ser poesia. Assim mesmo, como se se libertasse de uma mácula, num sentimento de redenção, resgatando emoções tão puras, tão vazias de maldade, que o real encantamento envolve o palco e o público. Assim mesmo, um espectáculo que é um "quarto de brinquedos" ou "uma casa de bonecas", onde se afiguram, em todos os cantos, "os lugares de Sophia", nota o encenador Luís Miguel Cintra a propósito de "O Colar", a primeira peça para adultos da autora de "O Nome das Coisas". A estreia, inserida no Ciclo Sophia, organizado pelo Teatro Nacional S. João (TNSJ), acontece esta noite, às 21h30, na sala portuense, numa co-produção com o Teatro da Cornucópia.A escrita de "O Colar" começou em 1998, com a redacção de um primeiro acto, seguindo-se anos de pausas e maturação - o tempo da escrita de Sophia entretém-se em múltiplas voltas - de uma obra que aceita a infinidade dos mundos, mas nunca concede perante o cinismo e a teia sinistra que os envolve. Para além do referencial mimético da sua poesia, "O Colar" confirma a crença inquebrantável da poetisa nos valores que defende. "Em Sophia não existe a tolerância como valor principal. Ela defende que temos de saber o que defendemos para dar a liberdade aos outros de também defenderem aquilo em que acreditam. Mas nada disto é impositivo", explica o encenador. A Veneza tantas vezes invocada pela autora nos seus poemas é a cidade-palco de uma história de amor - a primeira e avassaladora paixão de Vanina (Rita Durão) -, que termina com uma decepção amorosa. Mas se a trama oscila entre o riso e a melancolia, é sempre a alegria e a liberdade de viver que compõem a perenidade do amor. Por isso, a graciosa jovem coloca o colar que o Comendador (Cândido Ferreira), seu pretendente, lhe ofereceu, como um gesto para encontrar o seu apaixonado Pietro (João Lizardo). A sua atitude é um sinal de esperança para o Comendador, mas é em nome do "valor superior do amor" que Vanina provoca o equívoco. "Hoje minto, mas tenho de defender a vida", aponta Luís Miguel Cintra, referindo-se ao episódio do banquete, um momento em que a sátira depura aquilo que é eterno, o amor.Apesar da desilusão que sofre, a jovem "nunca se trai a si própria" e a poesia volta a brincar quando a Condessa Zeti (Glicínia Quartin), tia do obstinado Comendador, lhe revela que nunca deverá esquecer os sortilégios do primeiro amor. Tal como em muitos dos poemas de Sophia, onde há encontro há também despedida. Vanina "aprende a solidão como um lugar de dignidade e aprende a mais amar a vida nas suas contradições", escreve o encenador no programa do espectáculo. E, após o acto de purificação na "fonte dos pastores", dá-se um dos momentos mais belos da peça: o encontro da jovem com a Condessa e um poeta. E este poeta, figura de um incomensurável fascínio para Sophia, é Byron. Que também passou uma temporada em Veneza e por lá se perdeu de amores por uma dama da sociedade aristocrática. Que também escandalizou as convenções da sua época, em nome da liberdade, e consagrou um herói tido como demoníaco. Implícitas em "O Colar" estão também referências a outros poetas românticos: o nome Vanina surge num poema de Alfred de Musset e a saudação de Byron à jovem respiga o título de um poema de Goethe, "O Rei dos Álamos". A conversa de "sábios" que se desenrola entre a Condessa e Byron - "Pudemos imaginá-lo sentado à sua mesa/ Imaginar o alto pescoço espesso/ A camisa aberta e branca/ O branco do papel as aranhas da escrita/ E a luz da vela - como em certos quadros -/ Tornando tudo atento", escreve Sophia no livro "Ilhas" (1989) - regressa à Grécia amada, a Delfos, ao Parthénon e à dança de homens com os braços passados pelos companheiros. E no final, etéreo, a declamação de Byron do poema "So we'll go no more a roving". Texto que inspirou Sophia a escrever "Glosa de 'So we'll go no more a roving' de Byron" ("Ilhas"): "Não irei mais meu erro errando errante/ Pela noite fora/ Embora a lua brilhe tanto como outrora/ Não cesse do amor a voz uivante/ Que me devora".

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