O Pequeno Mundo do Amor

Este livro confirma Luísa Costa Gomes como um dos grandes contistas portugueses. Amor, esperança, confiança, são as palavras que servem a função iluminadora dos vários contos.

A carreira literária de Luísa Costa Gomes iniciou-se com uma colectânea de contos que intitulou "Treze Contos de Sobressalto".Vinte anos depois (pelo meio, mais contos, romances, peças de teatro, crónicas), reincide e junta nove contos (alguns já publicados) à sombra titular de uma quase-novela a que chama "Império do Amor". O sobressalto a dar lugar ao amor? Uma nota de badana, em que se apresenta a autora e a obra, aponta nesse sentido: "Na sequência de contos 'Império do Amor' o tema recorrente é o dos laços-familiares, amorosos, de amizade..." Laços, sim, talvez, mas amor só se for em sentido irónico, as palavras e os gestos (os gestos que as palavras expõem) a dizerem a ausência do amor, a solidão, o desacordo, a falta de sintonia. A excepção (a possibilidade de conjugar o verbo "amar") encontra-se no conto intitulado "Da Escada" em que Adelaide, uma mulher de meia idade e a viver um amor que é meio amor e meio desencontro (como todos os outros que povoam as páginas dos contos), surpreende a meio da escada (e nós com ela) dois jovens adolescentes a balbuciarem (a ensaiarem) o amor e a eternidade e, também, as hesitações, os medos, a dor de se descobrir a alteridade (o Eu atravessado pelo Outro), a comunicação interrompida (a "primeira ferida"), a esperança, que se ergue, e logo ameaça descender, chegar ao solo. "Oír ese Río", de certo modo, é a conjugação seguinte do verbo amar, "ao pé das escadas", o futuro a virar pretérito perfeito, o mito do andrógino revisitado. De novo é a adolescência convocada: uma mulher adulta retira dos confins de uma gaveta papéis e cadernos em que se descobre adolescente indistinta e confundida com o amigo (Anitito é o nome que traduz a indissociabilidade de Ana e Tito), depois, a separação, por artes da feiticeira Eliane, que dá origem a Ana & Tito (a sigla de uma cumplicidade com algo de empresa comercial) e, logo a seguir, à descoberta da singularidade que se descobre solitária, eu ou tu, Tito ou Ana. Amor, esperança, confiança, são as palavras que servem a função iluminadora das diversas narrativas para dizerem o contrário do que anunciam operando, assim, como meios eficazes de desconstrução. A palavra "amor", omnipresente em "O império do amor" - "Amor, amor, amor, por todo o lado, amor, amor, amor."-, põe em evidência o logro que a sustenta, tal como a "esperança", que anima Páris, doente, à espera do irmão, Adónis, e da cama de pregos milagrosa, e serve de título ao conto ("Esperança"), em que um filho enredado no inquebrável cordão, que o prende à mãe louca, denuncia como "a estúpida hidra da esperança.", se revela sinónimo de desesperança. Quanto à "confiança", confiança em si ou no outro, se é apresentada como condição da cura da doença de existir (Jerome, em "Vida Eterna", a proclamá-lo, vindo do Além para as sessões de Madame Soupir), é sempre denunciado o ilusionamento (auto-ilusionamento compulsivo) que lhe está subjacente (Alda em "Império do Amor" ou Mini em "Criação do Mundo").Mas a auto-confiança ou a possibilidade de a incrementar (e o que isso comporta de ilusão) serve de pretexto para uma sátira feroz da psicanálise no conto "Quadro Abstracto". "Cão que Não Ladra", o quadro "abstracto" que manifesta "influências de grande parte dos pintores e correntes do último século e meio", é a imagem irónica da psicanálise e da sua prática traçada por alguém fascinado com o princípio da associação livre (veja-se o conto "A verdade sobre Arménio Falcão") e que não compreende "como cura a psicanálise". "Império do Amor" confirma Luísa Costa Gomes como um dos grandes contistas portugueses: a arte de erguer em poucas páginas um pequeno mundo onde personagens, consistentes na sua incoerência ou processo transformativo, vivem e se entrecruzam, tudo isto mediado por um olhar enviesado (o deslocamento de perspectiva) que desinstala o leitor do lugar comum e o faz aceder a sentidos outros.

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