Ao encontro de Oskar Schlemmer

A Culturgest encerra o seu ciclo de homenagens a importantes figuras da dança do século XX com Oskar Schlemmer, inventor de gestos mecãnicos e figurinos-esculturas. Um encenadora e duas coreógrafas exploram o universo de um dos nomes mais significativos da Bauhaus e revelam por que razão muitas das suas ideias se matêm actuais.

Criar máscaras e figurinos como quem dá forma a uma escultura. Impor-lhes o corpo e os seus contornos, questionando o orgânico sem ceder ao simplismo da mecanização. O universo performático de Oskar Schlemmer, um dos mais brilhantes artistas da Bauhaus (escola alemã do início do século XX responsável por uma profunda inovação artística), é o objecto da última homenagem que a Culturgest presta a criadores cujo contributo foi determinante para a história da dança.Explorando a diversidade que caracteriza o percurso deste alemão que ousou reflectir sobre a possibilidade de transformar em matéria a "ideia pura", o programa que esta noite estreia no Grande Auditório da Culturgest, foi ao encontro de três linguagens - a da encenadora Lúcia Sigalho (Portugal) e a das coreógrafas Lia Rodrigues (Brasil) e Catherine Diverrès (França). O resultado é uma noite composta por três curtas peças que procuraram o que de Schlemmer existe no vocabulário contemporâneo. Ser simples, não pobreAntes de pensar na possibilidade de trabalhar a obra do criador do "Ballet Triádico", Lia Rodrigues e a sua companhia optaram por procurar o que significava homenagear um artista com a sua dimensão. Não queriam desvirtuá-lo caindo no erro de fazer uma peça "à la Schlemmer ", nem pretendiam comprometer o objectivo do projecto, afastando-se em demasia. O equilíbrio foi, afinal, fácil de encontrar. "Buscou-se, portanto, falar a partir dele e não sobre ele" (título da proposta em estreia) resume, em pleno, a estratégia utilizada.O Brasil é o tempo-espaço escolhido. O contexto dos corpos que lhe dão forma (Marcela Levi, Micheline Torres e Jamil Cardoso), com direcção de Lia Rodrigues e dramaturgia de Silvia Soter, é um dos ingredientes essenciais, tal como a industrialização do início do século XX o foi para Schlemmer."Não conhecíamos a fundo a sua obra. Lembro-me de ter visto o 'Ballet Triádico', em 1972, e tinha imagens da passagem de [Walter] Gropius [um dos fundadores da Bauhaus] pelo Brasil. Aceitar esta homenagem foi, essencialmente, uma descoberta que nos ensinou muito sobre nós mesmos, sobre os nossos corpos, sobre a dança que fazemos", explica Lia Rodrigues.Refutando as opiniões dos especialistas que olharam as limitações ditadas pelos figurinos de Schlemmer como reflexos de uma mecanização simplista, Marcela Levi defende: "O limite não tem de ser mortificante. Ninguém pode tudo. É preciso tratar o limite como ele, utilizando-o como um motor de criação que possibilita outra existência."Os principais vectores reflexivos de Schlemmer a que se dedicaram - a combinação livre de formas e cores, o envolvimento artístico e humano e o posicionamento político - foram pontos de partida e de chegada. Com ele descobriram que a tradição coreográfica brasileira, habituada à falta de condições de trabalho, tem muitos pontos de contacto com o seu "gesto mínimo", com a possibilidade de "ao simples atribuir muitos significados". Com ele aprenderam que a "mestiçagem" cultural do seu país levanta questões que já Schlemmer colocava, relativas ao lugar da arte e à importância do criador. Lia Rodrigues resume: "Como ele dizia, deixar que tudo se desenvolva livremente, com a consciência que ser simples não significa ser pobre."o gesto teatral"Triangulação Oskar: A Morte do Cisne" é o contributo da encenadora portuguesa para esta homenagem. A princípio, criar a partir do pensamento performativo de Schlemmer - sobretudo quando o seu trabalho, tal como o da Bauhaus, sempre lhe "interessou mais pela parte escultórica e arquitectónica" - pareceu-lhe estranho."Tive de me perguntar o que tinha eu a ver com Schlemmer, com as reflexões que tinha desenvolvido. Pouco ou nada conhecia da sua ligação à dança e ao teatro e, por isso, pareceu-me inusitado o convite do António [Pinto Ribeiro, programador da Culturgest]. O que a seguir descobri avançou muito mais pontos de contacto do que podia imaginar", afirma Sigalho.Os pontos de contacto a que se refere têm a ver com a reflexão sobre o território teatral, a anulação da distância entre o palco e a plateia, o lugar que o orgânico deve ocupar: "Acho que nos encontramos na sua obsessão pela identificação do espaço teatral, a relação palco-teatro. Todo o meu trabalho tem sido questionar estes locais."Consciente de que "não podia fazer a enciclopédia Schlemmer vista e revista por Lúcia Sigalho", e renunciando ao risco de tentar abarcar todas as facetas do criador, acabando por fazer, provavelmente, um mero "exercício de estilo", a encenadora aprofundou a pesquisa. A mecanização dos movimentos e a reflexão por ela suscitada - a referente ao "gesto teatral" - levaram Sigalho a descobrir diferenças entre ambos que, ao invés de os separarem, conduziam a uma profunda aproximação. "Os gestos aparentemente muito controlados de Schlemmer pareciam opostos ao gosto que tenho de trabalhar o involuntário, o que as pessoas não dominam no seu próprio corpo. Mas descobri que, dentro daquele formalismo, pode haver uma imensa liberdade."A extensão do gesto teatral e as suas repercussões, associadas à pesquisa sobre "as expectativas do público e do palco", são outros momentos do encontro Sigalho-Schlemmer. No solo de hoje, em que Sigalho também será intérprete, ao contrário do que tem vindo a acontecer, o território teatral amplia-se para acolher o gesto "reduzido à saudável e desejável poeira que lhe compete".A força da abstracçãoA estrutura cenográfica dita quase tudo. O som faz o resto. Encontradas as formas que limitam os movimentos dos quatro intérpretes e a grande esfera que assume diferentes velocidades de rotação, Diverrès determinou a área da obra de Schlemmer que iria explorar. "Começámos pela ideia de superfície, como na pintura. Acabei por fazer muitos desenhos, trabalhando a noção de não-volume, a ausência de perspectiva", explica.Ancorando num espaço limitado - como "limitados eram os figurinos" do artista alemão - a criação coreográfica, colocou uma hipótese de trabalho que lhe parecia incontornável: "Se o espaço fosse matéria física, os gestos dos bailarinos desenhariam no ar figuras geométricas precisas."Partindo de uma estética intimamente ligada ao fenómeno da industrialização, cujo contexto social é fornecido pelos sons repetitivos ou a voz de Marlene Dietrich, a coreógrafa abordou a mecânica - tantas vezes considerada o factor de desumanização do vocabulário Schlemmer - do ponto de vista instrumental. "A mecanização representa em Schlemmer a força de abstracção que faltava ao teatro. É apenas a vontade de procurar um novo espaço. Os seus figurinos, ainda que limitadores do movimento, criam focos de tensão essenciais à criação. Como podem considerar desumana uma linguagem que tem tanto de lúdico?"A "esquizofrenia" de Schlemmer (aqui entendida como a capacidade de se entregar a múltiplas formas de expressão) é o que fascina Diverrès: "É a questão do homem, mais do que a obra, que me move."

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