Foi Você Que Fez 30 Anos?

Se você fez vinte anos na década de 90, então entrou, irremediavelmente, na idade adulta: os 30. É por isso que sente, porventura, que a vida não está apenas cara, está também cansada. Veja "António, um Rapaz de Lisboa" como o retrato da sua juventude. Que já lá vai.

"Viste-me aquela miúda?" No último plano do filme "António, Um Rapaz de Lisboa", uma rapariga mergulha na piscina, nada uns valentes metros debaixo de água, ressurge à superfície, tira os óculos e fixa o olhar naqueles que estão do lado de fora da tela. Não a conhecemos de lado nenhum - é a primeira vez que aparece no filme - e já não vamos a tempo de conhecê-la melhor, porque o que se segue é o genérico final. De onde vem esta sensação, no entanto, de que ela está próxima de nós exactamente porque nenhum papel lhe foi atribuído e se mantém anónima? Ela é, só pode ser, uma rapariga de Lisboa. E o seu mergulho abraça o sopro geracional que o filme de Jorge Silva Melo encerra (e que a peça de teatro havia inaugurado em 1995).

Numa parada febril de personagens e figuras, que repetidas vezes se atravessam à frente do protagonista (Manuel Wiborg), muitas das vezes sem chegarem a apresentar-se (e por isso mantendo-se suspensas na narrativa), "António, Um Rapaz de Lisboa" é um filme sobre uma geração. Mas se abundam os incidentes, os signos, os sintomas e até alguma iconografia que a possa caracterizar, pouco, muito pouco, é revelado. E porquê? Porque é uma geração em apneia, que nem no sono pode respirar (o filme começa mesmo com um casal a ser arrancado da cama). Toda a acção é aspirada por uma coreografia de gente a rodopiar de um lado para o outro, num "stress" urbano onde o entusiasmo força a rima com a depressão, sem que nada daí resulte que não seja o constante mergulho e regresso à superfície.

E António (que embora não seja um "beach boy" até vai à piscina) é sugado desde o início por esse remoinho, de que nunca chega a libertar-se. Só lhe resta deixar-se levar até ao fundo. Essa é, de resto, a sua única sabedoria: ele sabe que à superfície o remoinho é demasiado poderoso; mas que no seu epicentro, onde nasce, é apenas uma insignificante vareta que agita as águas. Basta-lhe conter um pouco mais a respiração e regressar à superfície, para que tudo volte a acontecer, uma vez mais.

Padrasto presente. "António, Um Rapaz de Lisboa" é de facto um filme "sobre" uma geração, a que fez os vintes na década de 90 e que entra, surpreendida e ainda um pouco forçada, numa irremediável idade adulta: os 30. Mas não só. É também o "filme de" uma geração. E esse "filme de", ao contrário daquele que agora estreia, ainda está incompleto.

Os actores que fizeram "António..." (peça), e mais alguns que foram acrescentados ao "António..." (filme), correspondem à geração abordada na história, mas não podem ser confundidos com as personagens que interpretaram. Manuel Wiborg, Joana Bárcia, Sylvie Rocha, António Simão e Paulo Claro (que morreu no Verão passado) são alguns dos nomes que, desde há seis anos, constituem o núcleo duro do projecto colectivo liderado por Jorge Silva Melo, baptizado com o nome Artistas Unidos (AU). Esses actores ganharam aquilo que a sua geração nunca tinha pedido: uma filiação, uma figura paterna. E Jorge Silva Melo (JSM) pôde finalmente criar filhos, dar-lhes uma educação, um sentido da história, tanto artística como cívica e até política. A união de JSM com este grupo de actores foi um dos poucos casos (senão o único) em que a tão repetida figura do pai ausente da geração de 90 foi substituída por um padrasto presente.

E do presente, da evidência desse presente, se tratou desde o início. Isso aconteceu durante o seminário de escrita da peça "António, Um Rapaz de Lisboa", no Acarte, em que as actualidades irrompiam pelo texto dentro, acabando por tornar-se, nas encenações seguintes, numa espécie de marca dos AU. "Fazer um texto - um texto, um texto, um texto! - dos dias de hoje. Tão de hoje que até haverá partes em que as personagens verão a TV do dia e lerão os jornais da véspera ou desse mesmo dia", escreveu nessa altura JSM.

Esse fervor consciente do presente (única solução perante a impossibilidade de definir os valores, a ideologia ou até mesmo as ilusões dessa geração) subsistiu nas peças seguintes, como "O Fim" (que, curiosamente, começou por ser um argumento para cinema), "Prometeu" e "Num país onde não defendem os meus direitos eu não quero viver". Através de enredos originais, ou retomando, em versões actualizadas, a vitalidade de Sófocles e Kleist, JSM esforçou-se por criar um jogo de transparências dos temas e obsessões da sua geração com o tempo dessa nova geração que adoptou. O curto ciclo de Brecht foi a natural continuidade desse projecto, onde se recuperou uma ideia já aventada durante o seminário de escrita de "António": a morte do encenador. Foi quando aconteceu o programa "Sem Deus nem Chefe" (uma série de pequenas produções em que os actores definiam os textos que interpretavam, encenavam-nos e responsabilizavam-se também pela sua produção); ou quando JSM regressou ao palco para interpretar, sem a figura tutelar do encenador, "Na Selva das Cidades".

Todos esses processos foram depois sistematizados quando os AU se fixaram no Espaço d'A Capital, no Bairro Alto, em Lisboa, e a sua produção entrou em velocidade de cruzeiro. Algo, no entanto, ficou para trás. Em primeiro lugar, a eloquência musical das encenações, com dezenas de actores a pintarem uma tela ao vivo, numa ideia de teatro total e com um sentido de contemporaneidade ao minuto - as grandes produções deram lugar às pequenas produções; em segundo lugar, ficou também para trás "António, Um Rapaz de Lisboa".

Fossa nova. É que o filme fixa num passado aquilo que começou por ser um diário de bordo geracional, colando-se ao tempo e acompanhando-lhe o ritmo.

O que falta à história deste António é vê-lo na Lisboa de agora, cada vez mais fechada sobre si, desde que El Corte Inglés foi inauguado na Av. António Augusto Aguiar, desde que os subúrbios estão mais afastados da capital, desde que o Sporting deixou de ser um campeão adiado e desde que a mãe de António (Lia Gama) já não precisa de suspirar "Ai Sevilha" (nem de ir a Sevilha por causa de El Corte Inglês), porque já temos tanta Espanha em Portugal como a Espanha se tem a si própria.

A geração de António, afinal, continua em apneia. Os empregos nunca chegaram a melhorar e as contas não passaram a ser pagas a tempo e horas. A mãe continua a ir lá a casa com os pastelinhos de bacalhau e a roupa também é ela que a passa.

É claro que todos nós, com a idade do António, temos amigos em Almada - e alguns até fazem música. Nem todos nos transformámos em empresários em nome individual, mas de forma ou outra temos uma relação equívoca com as finanças e mais cedo ou mais tarde vamos ter de nos mascarar de Pai Natal.

A geração de António é uma nação de sportinguistas, porque habituou-se a esperar pacientemente pelas vitórias. E é um país de benfiquistas, porque continua a desacreditar das derrotas. Entre a vida e a morte, opta por ficar na cama. Não é por comodidade, nem por preguiça, apenas pela ressaca. A vida não está apenas cara, está cansada.

A fossa é outra, é a fossa nova, mas Ana (Sylvie Rocha) continuará a explodir da mesma forma de sempre: "Um dia destes passo-me!" E é isso que se deve continuar a ouvir, com as novas personagens a cruzarem-se à frente, tanto do António como de nós. Afinal, quem é aquela rapariga da piscina?

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