O nó reabsorvendo a madeira toda

Estes percursos de João Barrento, que alguns poderiam considerar da mais circunspecta erudição, são verdadeiras "viagens", e por isso mesmo têm uma dimensão secretamente poética

Prosseguindo numa impressionante actividade de ensaísta, João Barrento propõe-nos um novo livro, a que deu um título sugerido por um verso de Vasco Graça Moura: "a lição da europa é irmos / sofregamente até ao fundo da espiral vertiginosa". Eis-nos assim diante de "A espiral vertiginosa - ensaios sobre a cultura contemporânea" (publicado como habitualmente pela Cotovia), na sequência de "A Palavra Transversal" (96), "Uma Seta no Coração do Dia" (98) e "Umbrais" (2000).Este volume tem uma característica curiosa. Começa por dois ensaios que se apresentam com o formato dos verbetes enciclopédicos: "Que significa 'moderno'?" e "Cultura, contracultura e anticultura", um pouco à maneira de alguns espessos trabalhos que encontramos na universidade alemã, em que se fazem léxicos especializados que percorrem o destino das palavras e as suas redes conceptuais. Neste plano, descobrimos, sempre com a prodigiosa erudição de quem acompanha o campo literário, estético e filosófico em língua alemã, inglesa, francesa, espanhola e italiana, um pendor metódico e sistemático que ajuda imenso a que o leitor se sinta com "as ideias arrumadas". Mas, nestas extensas e profundas sondagens no domínio da história das ideias e das palavras, nunca se abandona o "vertiginoso" que o título anuncia, e que permite que o inventário mais organizado se reconverta inesperadamente no posicionamento mais empenhado e subjectivo: de facto, há neste livro alguma cólera e muita veemência perante o curso da cultura contemporânea (mas estamos aqui numa dimensão essencialmente política) que em amplos aspectos evoca a indignação exibida por Eduardo Lourenço em "O Esplendor do Caos".Se lermos mais atentamente o último e breve ensaio intitulado "Nous sommes embarqués", percebemos, julgo eu, duas coisas: em primeiro lugar, que estes percursos, que alguns poderiam considerar da mais circunspecta erudição, são verdadeiras "viagens", e que por isso mesmo têm uma dimensão secretamente poética: toda a poesia é uma viagem, toda a viagem deve ser considerada como exercício poético. Em segundo lugar, que, se João Barrento procura por vezes escrever com grande rigor e precisão, isso não exclui, antes implica, um rigor e uma precisão que se pretendem cada vez mais inseridos numa concepção poética do ensaísmo: essa que não permite a distância soberana e reconfortante do sujeito face ao objecto, na medida em que nos diz que nós estamos todos embarcados no mesmo movimento de escrita. Apoiando-se muito na literatura alemã (que tão admirável e extensamente conhece), João Barrento lembra com Novalis que "é para dentro de nós que vai o caminho do mistério". E recorre a Hermann Broch para nos dizer (citando "A Morte de Vergílio") que a poesia "é a mais estranha das actividades humanas, a única que serve para o conhecimento da morte". Poderíamos sugerir talvez que se trata de um conhecimento da morte que procura deter a aproximação da morte: e, nessa medida, contrapõe ao "vertiginoso", com que o nosso tempo nos empurra em direcção ao vazio, uma outra forma de sageza que é a da aprendizagem da lentidão. Daí a esplêndida confissão final: "tudo o que eu pudesse acrescentar seria apenas um prolongamento do meu próprio processo de (re)aprendizagem da viagem como poesia. E resume-se numa frase: estou a reaprender a lentidão". É claro que palavras como "moderno", "modernidade", "modernismo", "modernidades programáticas", "pós-moderno", "situação pós-moderna", "condição pós-moderna", "pós-modernidade", estão de tal modo saturadas de significações e acepções que entrar neste enredo é ter de destrinçar um sem número de fios definitivamente confundidos. De qualquer modo, a modernidade é sempre apresentada como crise, e, como João Barrento sublinha, "o que se deu , neste processo crítico, nesta viagem da modernidade como crise, foi a passagem da idade clássica a uma aventura romântico-moderna em que a possibilidade da experiência, objectivada em tradições e convenções da língua e dos símbolos da vida colectiva, dá lugar à solidão radical da vivência, ou da vivência radical, fruto da 'invenção do indivíduo' pelos Romantismos". Os modernos gostam sempre de "viver em perigo e abarcar o incomensurável", e nisso provavelmente se separam daqueles que são designados (ou por vezes se auto-designam) como "pós-modernos", que vivem em jogo e percorrem em todos os sentidos o mensurável. O moderno é um amplo processo de transformação social, instabilização das consciências e renovação das linguagens artísticas - um processo que João Barrento gosta muito pessoanamente de considerar como de "desassossego". E nele assistimos a uma maximização simultânea do desejo de revolução na sociedade, no pensamento e na arte - sempre dilacerados entre o silêncio e o grito. Em palavras que já são minhas, diria que não há moderno sem um sentido dos limites a ultrapassar, enquanto não há pós-moderno sem uma aceitação dos limites a não ultrapassar (mesmo que se vá o mais longe possível no interior desse limites através de categorias como a da "plasticidade"). Porque o moderno tem sempre um paradoxo essencial: dá expressão ao tempo através de figuras da intemporalidade. O que permite a João Barrento citar uma passagem extraordinária de Herberto Helder: "A única meditação moderna é sobre o nó / absorvendo a madeira toda".Daí a sempre estimulante organização, num quadro de polarizações, da oposição entre modernidade e modernismo versus pós-modernidade e pós-modernismo que se encontra na página 40, e que retoma esquemas análogos de Ihab Hassan, Anthony Wilder e recentemente entre nós Hermínio Martins, e a conclusão a que chega na página seguinte: "O modernismo foi uma cultura da rotura em profundidade, que virou do avesso os paradigmas racionalistas, positivistas e realistas; o pós-moderno é uma cultura do radical em extensão, numa convivência sem complexos.Que se perde neste processo? A noção de "transgressão", que, na ausência de um centro ou referência dominante, deixa de fazer sentido. A noção de trágico, como sublinhará incansavelmente Eduardo Lourenço, uma vez que a natureza dilemática do pensamento e da arte se acomoda em figuras de convívio pacificado. Ou a noção de dor - como irá mostrar João Barrento no ensaio intitulado "Receituário da dor para uso pós-moderno". Aí se diz que, sendo "o simulacro" uma categoria fundamental do "pós-moderno", e a sua única forma de autenticidade, "o pós-moderno não suporta essa manifestação de autenticidade da experiência que é a dor". Curiosamente, João Barrento entra numa espécie de contraponto com o título de um livro de António Pinto Ribeiro ("Ser feliz é imoral?") para lhe opor um outro título, neste caso o de um livro de Paul Watzlawick: "Instruções para se ser infeliz". Mas entre o narcisismo dos simulacros e o narcisismo da coisa perdida, não haverá outras viagens (ainda) por fazer?

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